Quando se está muito imerso na forma de um meio artístico, é comum que ocorra um certo desencantamento: passa-se a enxergar as técnicas empregadas pelo artista visando gerar certo efeito ao invés de se sujeitar ao efeito em si. Encontrar o equilíbrio entre a análise e o encantamento é um grande desafio para mim como escritora e leitora – ou como “nativa” e acadêmica, nas palavras de Diana Klinger – e isso se tornou ainda mais evidente quando reli recentemente Dubliners de James Joyce. Enquanto que a primeira leitura foi apenas prazerosa, a segunda me ensinou mais sobre escrever do que os dois cursos de escrita criativa que fiz durante a faculdade. Isso se deve, em parte, a um amadurecimento técnico graças ao acúmulo de experiência literária entre essas duas leituras.
Muitas vezes a admiração por uma obra funciona como ponto de partida para a minha escrita. Não se trata da vontade de copiar, mas de compreender como o autor chegou ali e tentar fazer parte daquilo; de descobrir o que eu seria capaz de dizer se eu tivesse os mesmos instrumentos e, para isso, preciso entender que instrumentos são esses e como eles foram usados – é neste momento que a crítica literária atua como um recurso para a minha produção artística, tanto que o conto que escrevi recentemente foi inspirado não só pela ficção de Joyce mas também pela não-ficção de Klinger e Jacques Rancière.
O Convento
Ela imaginava que ainda havia esperança. Era fim de tarde e a sala, apesar de ampla, estava abafada. A temperatura ali parecia mais alta do que lá fora devido ao tom mostarda das paredes. Olhando ao seu redor, Vivian achava curioso como uma mera ilusão de ótica interferia nas sensações físicas. Dava para ou…
Um dos temas mais intrigantes trabalhados em Dubliners é a insuficiência da linguagem para capturar com precisão a realidade, a verdade e o presente, o que é uma preocupação distintamente modernista. A proposta do autor com esta coletânea era ilustrar a “paralisia” de sua cidade natal, a partir de pessoas comuns em situações corriqueiras facilmente identificáveis pelo público e ao mesmo tempo perturbadoras por exporem a intimidade de toda uma sociedade. É com base nesta exposição que Joyce critica as três principais instituições que ditavam a vida irlandesa da época, qual sejam, Igreja, Governo e Família, através de histórias que estariam, nas palavras de Rancière, “às margem da ficção”, isto é, “os acontecimentos insignificantes da existência cotidiana ou a brutalidade de um real que não se deixa incluir” (p.14).
Percebe-se em Dubliners o desejo do artista moderno de se aproximar da vida interior verdadeira (algo menos polido, menos heroico e por vezes marginal) traduzido na narração de “banalidades”, sem uma trajetória e conclusão nos moldes aristotélicos e “sem margens”, como diz Rancière sobre as Primeiras Estórias (1962) de João Guimarães Rosa. Tal qual as “estórias” do autor brasileiro, a maioria dos contos de Dubliners terminam de forma “não-resolvida”, como se o objetivo de Joyce fosse apenas mostrar uma vinheta da realidade dublinense do início do séc. XX, com todas as suas figuras prosaicas e como elas refletem a cultura social “paralisada” do país.
Tal premissa pode parecer incoerente com a ideia predominante que se tem de Joyce como o criador idiossincrático de Ulysses e Finnegans Wake, obras notoriamente difíceis pela linguagem hermética e narrativa na qual as margens entre interior e exterior estão completamente dissolvidas. É a esta versão de Joyce que Rancière se refere quando o menciona como exemplo culminante da “fragmentação da experiência” (p. 132). Contudo, as histórias de Dubliners foram as primeiras produções de Joyce e, nessa época, o jovem escritor ainda estava majoritariamente preocupado com a realidade tangível, mas que iria se tornar cada vez menos tradicional ao longo de sua carreira – entre a composição de “As irmãs” e a publicação de Ulysses há um intervalo de dezoito anos.
O modernismo ficcionalmente marginal presente em Dubliners consiste, segundo José Roberto O’Shea, na narração de um evento “fora da ação”, isto é, um “encontro casual”, ou um “pedaço de conversa”, que enseje o conto:
O escritor moderno não visa precipuamente à aventura romântica, nem ao incidente dramático. Visa representar/transformar a rotina da vida cotidiana e explorar os mecanismos psicológicos do comportamento humano. (O’SHEA, p. 11, 1993.)
Em “As irmãs”, conto que abre Dubliners, um menino narra a experiência interior e exterior com relação à morte do Padre Flynn. À medida que ele interage com os adultos ao seu redor que conheciam o Padre, vão surgindo rumores sobre a vida do sacerdote que adicionam à história uma ambiguidade moral, levando o leitor a questionar a verdadeira essência do legado do Padre e o que ele representa para aquela comunidade restrita. Esta ambiguidade é criada a partir da supressão da fala dos personagens através do uso recorrente de reticências.
O velho Cotter estava sentado diante do fogo, fumando, quando desci para jantar. Enquanto minha tia servia o mingau ele disse, como se estivesse retomando algum comentário anterior:
– Não, não vou dizer que ele fosse exatamente... mas havia algo estranho... havia algo de misterioso nele. Na minha opinião...
Deu umas baforadas no cachimbo, decerto elaborando na mente a tal opinião. Velho chato e bobo! Quando o conhecemos era um sujeito bem cativante, que falava de bagaço e de serpentinas; mas logo cansei-me dele e de suas histórias intermináveis a respeito do alambique.
– Eu tenho a minha teoria sobre o assunto – ele disse. – Acho que era um daqueles... casos estranhos... Mas é difícil saber ao certo… (p. 21)
Tal como ocorre em “Os Irmãos Dagobé” de Guimarães Rosa, o conto de Joyce cria, a princípio, um suspense sobre um evento catalisador (neste caso, a morte do Padre Flynn) e o leitor aguarda “saber em que momento acontecerá aquilo que se sabe que tem de acontecer” (RANCIÈRE, p. 160), só que este momento nunca chega. Tudo que é dito com relação à morte do Padre é apenas sugerido em meio a reticências, e a satisfação da revelação do mistério é “um acontecimento que não acontece” – a narração simplesmente cessa, o que no critério de Rancière faz de “As Irmãs” uma “verdadeira” história, pois Joyce não joga mais o “jogo do encadeamento entre o que está previsto e o que advém” (p. 160).
A presença constante de reticências e a supressão do pensamento atuam, portanto, como um recurso extremamente relevante tanto para a história em si quanto para a “mensagem” que Joyce quer passar sobre a sociedade dublinense paralisada e sua controversa relação com a Igreja, e o leitor é incentivado a tirar suas próprias conclusões sinistras sobre o que o Padre fez antes de morrer. A representação da Igreja aqui é envolta em falhas e tabus e, ainda que jamais explicitada, a suposta paralisia física do padre Flynn é sintoma da paralisia generalizada que, segundo Joyce, abatera-se sobre a Irlanda (O’SHEA, p. 10).
Vejamos esses dois exemplos do uso de reticências. No primeiro, há uma insinuação que é feita e nunca concluída, deixando nada mais que uma sugestão pairando na conversa e criando na narrativa um clima de desconfiança e incompletude. No segundo, o tabu com relação à temas “impróprios” e desagradáveis como a morte cria uma névoa de desconforto em volta das circunstâncias da morte do Padre:
– Eu é que não deixaria meus filhos – ele disse – terem muita conversa com um sujeito daqueles.
– O que o senhor está querendo dizer, Mr. Cotter? – perguntou minha tia.
– Mas por que o senhor acha que não é bom para crianças, Mr. Cotter? – ela perguntou.
– É ruim para as crianças – disse o velho Cotter – porque elas se impressionam com facilidade. Quando as crianças veem coisas assim, a senhora sabe, isso tem consequências… (p. 23)
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Eliza voltou a suspirar e inclinou a cabeça em sinal de assentimento. Minha tia dedilhou a haste da taça de vinho antes de tomar um pequeno gole.
– Ele... em paz? - perguntou.
– Ah, em muita paz, minha senhora – disse Eliza. – Não deu nem pra perceber o momento em que ele deu o último suspiro. Foi uma morte linda, Deus seja louvado.
– E tudo...?
– O padre O'Rourke esteve com ele na terça-feira e deu a extrema-unção e preparou ele direitinho. (p. 26)
É a partir deste aspecto vago da linguagem do conto que notei uma certa “ansiedade” envolvendo a relação precária do pensamento com a palavra, pois esta nunca será suficiente para dizer a pura verdade, e Joyce demonstra isso literalmente com suas reticências e insinuações que confundem o menino e consequentemente o leitor, que está sujeito à narração subjetiva. Como explica César Guimarães, cabe ao narrador extrair sentido das imagens verbais existentes no texto (p. 78), porém, após a conversa com o velho Cotter o menino-narrador admite que ficou “quebrando a cabeça para entender o significado de suas frases incompletas” – tal qual o leitor, e essa descrição tão explícita da falha do processo cognitivo com relação à linguagem me parece propositalmente metalinguística.
Por outro lado, ao mesmo tempo que a linguagem vaga causa insatisfação, ela pode ser uma via para a liberdade: se a “verdade” não está delimitada na trama e portanto não existe, a história se abre para a interpretação, permitindo uma maior fluidez e plasticidade de sentido. Cabe aqui lembrar deste argumento de Klinger sobre esta questão:
Essa é a aporia intransponível, “a verdade em literatura”: jamais teremos acesso ao outro, jamais poderemos dizer a verdade. A teoria literária, desde Aristóteles, ou seja, antes de existir enquanto teoria e a literatura enquanto literatura, resolve e fecha o problema da verdade na criação ficcional a partir da noção de “verossimilhança”. (KLINGER, 2014, p. 20)
Além disso, vemos em “As Irmãs” aquilo que Klinger chama de uma “linguagem que desconfia de si mesma” (p. 55). Logo no primeiro parágrafo do conto, Joyce fornece, através do narrador, pistas importantes para que possamos perceber o papel determinante da palavra no texto. Ao constatar que houve de fato a morte do Padre, o menino relembra certos termos que aprendeu no catecismo como “paralisia”, “gnômon” e “simonia”, e revela o assombro e o fascínio que meras palavras lhe causam:
Mas agora soava como o nome de algum ser maleficente e pecaminoso. Enchia-me de medo, e ainda assim eu ansiava por me aproximar dela e contemplar sua força mortífera. (p. 21)
Há muito que não é dito ou dito indiretamente no conto – o menino, por exemplo, só tem duas falas: “Quem?” e “Ele morreu?”, e é interessante notar que no único momento em que ele se comunica verbalmente e se inclui no mundo exterior é para dissimular. Ele já sabe a resposta para estas perguntas, mas omite sua verdadeira reação perante os adultos.
O silêncio em Dubliners é parte do diálogo e, ao perceber isso, fiquei me questionando quanto à função e o uso da linguagem narrativa – neste caso, a ausência deliberada de palavras como algo que também comunica, e talvez comunique até mais – a ponto de me inquietar o suficiente para testar esta técnica de escrita e experimentá-la na produção ficcional. Esta dicotomia é abordada de forma pertinente por Rancière, que diz:
a tarefa própria da literatura ‘realista’ é então transcrever a potência desses momentos de oscilação entre o acontecimento e o não-acontecimento, a fala e o mutismo, o sentido e o não-sentido sob suas duas figuras: a estupidez do déficit de sentido e a loucura do excesso de sentido. (p. 139)
Joyce conclui “As Irmãs” com reticências (único conto de Dubliners que termina assim), o que contribui para a temática geral da palavra que se perde não pode ser expressada, algo submerso que precisa ser inferido, e foi fascinante observar de perto como o autor utiliza um simples sinal de pontuação para dar uma matiz sugestiva para a história, e essa impossibilidade de apreender os fatos e a verdade está, paradoxalmente, mais próximo de um retrato fiel da realidade do que narrativas nas quais o sentido é óbvio, único, fixo – em suma, limitado.
comprei esse livro em um sebo faz muito tempo e até hoje está parado na minha estante, texto muito bom fiquei com vontade de finalmente ler o livro