Ela imaginava que ainda havia esperança. Era fim de tarde e a sala, apesar de ampla, estava abafada. A temperatura ali parecia mais alta do que lá fora devido ao tom mostarda das paredes. Olhando ao seu redor, Vivian achava curioso como uma mera ilusão de ótica interferia nas sensações físicas. Dava para ouvir as crianças rindo e brincando no pátio, um som prazeroso e explosivo que, ao ser transformado em ecos pela distância, tornava-se melancólico e até sinistro. A atenção da menina desviava constantemente para o teto repleto de afrescos religiosos e para as janelas altas de madeira. O lugar lembrava uma história que havia lido na aula de francês, em Troyes ou Arras. Entorpecida pela beleza da mistura arquitetônica franco-brasileira, quase não ouviu a pergunta.
“Você tem certeza?”, disse a freira com um leve sotaque estrangeiro, frio, que puxava o R. Ela tinha uma postura austera, mas havia algo de grosseiro em sua aparência. Era admirável sua capacidade de não suar. A indiferença climática talvez fosse uma consequência da aproximação com o divino, pensou Vivian.
“E então menina?”
“Tenho. Quer dizer, por que não? Eu gosto daqui. Quero falar com ele”, respondeu.
Irmã Coudrette a espiava com um olhar jesuítico, e Vivian percebeu que a inquisição ainda não chegara ao fim.
“Espere aqui”, disse ela, e saiu por uma porta à direita, deixando a menina sozinha.
Vivian não era nenhuma beata como certas colegas, porém nunca conseguia mentir para uma freira. Para um frade sim, na confissão antes da crisma, tentando convencê-lo de que a desobediência filial foi seu maior pecado até então. A confissão, de acordo com sua lógica, era inútil. Afinal, nada que ela dissesse corresponderia de fato aos seus pensamentos e, consequentemente, não seria a pura verdade – essa era a grande falha da linguagem: a facilidade com que se transformava em instrumento de falsidade e pecado; não raro pensava consigo mesma: “ainda bem que Deus está além das palavras, assim posso ficar em silêncio, sem dizer a coisa errada.” Ela precisava que Coudrette acreditasse que ela também poderia ser uma Santa Teresa, e fazer deste convento um castelo interior; mas algo estranho acontecia quando ela ficava diante do hábito preto e branco: um senso de respeito e admiração ancestral desperta e a obriga a ser honesta, por mais humilhante que seja. Nada era mais prazeroso para a menina do que receber a aprovação de uma freira; elas com seu senso de retidão quase feudal que nenhuma mãe consegue inspirar, afinal, elas sofreram o processo de desmistificação, enquanto as freiras, como mães metafóricas e esposas do único homem perfeito, são perfeitas por associação.
A luz cálida do entardecer acentuava a matiz amarela da sala, fazendo-a sentir como a personagem delirante daquele conto terrível. Sem saber se se passaram dez minutos ou três quartos de hora, ouviu finalmente o ecoar de sapatos baixos no tablado de madeira antigo, e Irmã Coudrette retornou acompanhada de um homem alto, grisalho, e de olhos castanhos tão escuros que mal se notava sua íris. Seu caminhar aerado e gestos sutis faziam a figura robusta de Coudrette parecer vulgar. Ao entrar, a freira esquadrinhou a sala com os pequenos olhos azuis buscando por sinais de intromissão que indicassem o caráter desordeiro da menina, mas ao concluir que ela nem sequer havia levantado da cadeira, atenuou a postura de cão farejador e sentou-se, junto ao homem, perante um enorme birô de mogno.
Coudrette falhava em disfarçar contorções na cadeira ao tentar acomodar seu corpo no espaldar de madeira estreito. Enquanto lutava para se sentar de forma digna, disse:
“Este é o Padre Anselmo, ele chegou de Dol-de-Bretagne semana passada e de agora em diante vai substituir o Padre Martin nas celebrações da missa. Eu não queria incomodá-lo, Padre Anselmo, mas como eu lhe disse a menina foi tão insistente… querendo falar com o Padre Martin de qualquer jeito… na minha época não havia tanta… sabe? As meninas sabiam o lugar… bem, achei melhor convidá-lo para nossa conversa.”
Na sala ao lado alguém começou a tocar o piano centenário – herança do antigo dono do engenho que viria a se tornar o lar e o colégio das irmãs de La Retraite – a melodia desafinada era como um encantamento, e combinava estranhamente com a situação na qual Vivian estava inserida. O que teria acontecido com Martin? Ontem ele parecia tão bem, apesar de um tanto preocupado. Como explicar agora, para esses dois, que ela via este lugar como um reino de sonhos? Só Martin entenderia. Vivian se imaginava acordando de frente para o jardim interno cercado pelas quatro laterais do convento, repleto de hortênsias e, no centro, um Ipê Branco que na primavera cobria o pátio com suas flores como neve. A missa matinal seria a ponte para uma transição gradual do subconsciente noturno para o concretismo do dia, através dos sons hipnóticos entoados pela oração – nada do ritmo elétrico de quem tem que enfrentar o tumulto da vida urbana. Ela poderia ser um exemplo para as alunas, que iriam admirar sua devoção solene, mas delicada. Pensava nas conversas cheias de sabedoria que teria com as irmãs e com Martin, e no torpor da jardinagem e das atividades manuais tranquilas: uma forma nobre de ocupar o corpo enquanto a mente vagueia pelos mais elevados pensamentos. Mas acima de tudo, imaginava que nunca mais teria que sofrer as indignidades de uma existência banal.
“Você é Vivian, certo?” perguntou Padre Anselmo com uma voz rouca e distante.
“Sim”. Os olhos escuros estudaram o rosto da menina como se já a conhecesse, mas não lembrasse de onde.
“Há quanto tempo você estuda conosco?”
“Desde sempre. Foi minha primeira e única escola”
Após uma pausa, o homem respondeu baixando o olhar para uns papeis no birô: “E não se cansou de nós? Você parece ser muito… sabe? Parece… agitada demais. Não é do tipo que sairia de estudante para noviça. Bem, eu trouxe sua ficha…”
Enquanto as autoridades religiosas discutiam o histórico escolar de Vivian como se a menina não estivesse presente, ela pôde se ausentar da conversa momentaneamente – se retraindo em silêncio de um jeito que sempre fazia sua mãe perder a paciência – e pensava nos eventos do último ano que a trouxeram até a sala de Irmã Coudrette. Ela se via como uma Francesca moderna, e a ideia de sacrifícios secretos, um que ninguém entenderia fora ela, era extremamente romântica.
“Vivian?”, disse Padre Anselmo. “Você escutou? Perguntei o que seus pais acham disso.”
“Com todo respeito Padre Anselmo, mas não deveríamos perguntar logo à aluna porque ela acha que pode se juntar à nossa grande congregação?” disse Irmã Coudrette, transparecendo impaciência.
Com o passar do tempo, o calor da sala parecia ter diminuído, e os raios oblíquos do poente entravam pela janela e atingiam a escultura de uma mulher sentada numa pedra no canto da sala. Olhando para ela, Vivian lembrou que já tinha a visto antes, mas não ali. Um súcubo, Martin tinha dito. Ele sabia ensinar várias coisas além da Bíblia. Como era estranha aquela presença ali, principalmente sem Martin para explicar a mitologia por trás do trabalho de Rodin que havia deixado Vivian fascinada. Não era a obra original, claro. Ele contou a ela que havia trazido essa réplica extraordinária da França – ele gostava de falar sobre arte, e por isso as alunas o consideravam um grande erudito. Vivian observava que os adultos à sua frente pareciam não reparar na beleza do chiaroscuro ao seu redor. A noite se aproximava.
“Vivian? O que essa menina tem? Preste atenção quando estou falando com você!” disse Coudrette exasperada. Ela encarava a aluna com uma expressão assustada e repugnante. Olhando para o chão, só agora Vivian se deu conta de que suas meias não formavam um par.
“Irmã, você nos daria licença?” disse Padre Anselmo.
A freira tentou protestar de início, mas logo percebeu que talvez fosse melhor abrir mão de sua jurisdição. Lentamente ela se levantou e saiu pela porta à direita, contrariada.
O piano cessou. Vivian ergueu os olhos para o Padre Anselmo, buscando entender sua situação, mas o rosto do homem era indecifrável. Seus olhos pretos como os de um demônio refletiam a chama da lamparina na mesa, e pela janela aberta, a menina avistava o céu com os últimos lampejos do sol – parecia os olhos do homem. Agora não se ouvia nem crianças nem música, apenas o som do vento nas árvores que lembrava as ondas do mar.
“Feia essa escultura não é? Vi que você estava olhando para ela”, disse Padre Anselmo, se levantando e indo até o canto da sala. “Era do Padre Martin, ele tinha gostos um tanto… inclusive comentei com… mas já faz tempo. Imagino que você não saiba o que ela é…” ele riu. “Indubitavelmente – meu pai adorava essa expressão – não posso esperar que uma mocinha como você saiba dessas coisas.”
Vivian permaneceu em silêncio, olhando para a escultura. Por que Martin se desfez dela?
“Certamente, certamente… acho que é no Malleus Maleficarum que é dito… mas esse livro não é apropriado para mocinhas. Pois bem, então você quer se juntar à nós. Perdoe-me a intromissão, mas a senhorita deve admitir que as coisas do espírito são da minha conta, e a senhorita não me parece muito… com que frequência vais à missa?”
“Nunca falto.” respondeu Vivian, lacônica.
“É mesmo? Bem, Padre Martin sempre teve jeito com as palavras… E comunga?”
“Sim.”
“Bom, bom…”
“Onde está Martin? Achei que iria falar com ele hoje.”
Padre Anselmo andou até a janela e parou contemplando o jardim. Sem se virar para a menina, disse:
“Diga-me Vivian… você sabe o que é escrupulosidade?”
O sino da igreja bateu às seis horas e a sala se encheu de ecos latejantes e agourentos que causavam vertigem – a cabeça de Vivian começou a doer e ela apoiou uma mão no birô. Suas costas estavam molhadas de suor, mas o Padre não pareceu reparar. Ela precisava falar com Martin, só ele entenderia o que ela estava fazendo e não seria preciso ser eloquente ou convincente nem lamentável, e através da voz morna e sussurrante de Martin ela ouviria os próprios pensamentos que não conseguia exprimir e se sentiria vingada, contemplada, ela iria além de todos os outros que não entendem a verdadeira devoção espiritual, presos em suas rotinas insignificantes sem nunca experienciar a paixão de um sacrifício, da negação do Ser em nome de algo superior, mas ela sabia o que era isso, ela tinha experimentado, e Martin com ela, mas ele não estava aqui e ela sentia, lá no fundo, que não iria vê-lo novamente.
Enquanto a mente de Vivian mesclava as badaladas com suas apreensões, o Padre Anselmo continuava a falar, ainda de frente para a janela, soando mais como um homem que treina um monólogo em frente ao espelho do que alguém em uma conversa. Ele parecia não notar a respiração levemente ofegante da menina às suas costas.
“Por isso sempre fui contra a se aprofundar demais nas escrituras. É claro que precisamos ter propriedade no assunto, mas convenhamos que já aprendemos demais no seminário. E Martin o tempo todo aparecia com teorias… era como se ele estivesse procurando… se condenar por algo… ele deixou os cadernos aqui e, ora, francamente, os jovens de hoje parecem que querem mergulhar na miséria! Acham até bonito, falando de culpa sem parar… vagando por aí… soube até que uma das noviças o viu voltando para o dormitório ao amanhecer… rindo ou chorando ela não soube dizer… por que alguém como ele está tão preocupado com culpa e danação, não faço ideia. Imaginação demais nessa geração, é o que sempre tenho dito aos meus colegas na boa e velha França. Lá sim, os jovens tem rumo… apreço pela tradição, e aqui é tudo tão… e nos últimos meses, bem, quando recebi a carta de Coudrette eu já imaginava com o que estávamos lidando.”
“O que o senhor quer dizer com isso?” disse Vivian, quase num sussurro. Ela sentia que algo terrível havia acontecido com Martin, e não havia nada que pudesse fazer.
Padre Anselmo deu um longo suspiro e se virou. Um lampejo de confusão passou pela sua face elegante ao notar o aspecto doentio de Vivian. Era hora da menina ir para casa, pensou.
“Não acho que isso seja da sua alçada e eu detesto falar da vida alheia, mas se quer mesmo saber, o Padre Martin deixou nossa ordem e resolveu se juntar aos Trapistas. Uma completa tolice, na minha opinião – e eu sei que minha opinião é tida em alta conta nos ambientes civilizados – pois se ele não fosse tão… fleumático, poderia ter tido uma carreira promissora. Havia um bom lugar para ele na diocese de Rennes… bem, Deus certamente tinha uma missão para ele lá e não cabe a nós julgar a tolice dos homens.”
Vivian o encarava em silêncio, se esforçando para digerir a notícia. Então Martin se foi e sem dizer adeus. Sem dar a ela a oportunidade de mostrar seu comprometimento, sua crença tão forte quanto a dele. Lembrava de ter ficado atordoada quando ele lhe disse, durante uma de suas crises, para se juntar ao convento. Não era assim no começo, mas ao longo do tempo Martin foi se tornando cada vez mais difícil de agradar. Mas depois ela entendeu: se o destino dele é ao lado de Deus, o dela não poderia ser diferente.
“Então não tem mais como eu falar com ele? Martin já foi?”
“Sim, o Padre Martin já foi. E acredito que não teremos notícias dele por um tempo… um tanto medieval essa história de voto de silêncio não? Inclusive a essa hora…” – o homem fez uma pausa consultando seu pequeno relógio de bolso – “Já deve estar em alto mar.”
“Quando ele embarcou?”
“Hoje de manhã…”, disse Padre Anselmo. Uma batida leve na porta o interrompeu, e entrou uma senhora bastante idosa, vestida de azul-marinho, trazendo uma bandeja com pães e chá, depositando-a em cima do birô de mogno e saindo novamente sem dizer uma palavra.
“Santo Deus como está tarde! Olhe Vivian… por que você não pensa melhor? Você ainda é muito jovem e essa decisão é muito séria. A Igreja não é um esconderijo para meninas fujonas – claro que muitos pensam assim, principalmente pais desesperados, mas sei que não é seu caso – é um lugar de disciplina e alta respeitabilidade e não sinto… que essa seja sua vocação, não é verdade? Bem… bem, imagino que nossa conversa te deu muito o que refletir… aconselho também que leia Provérbios 31:30 – melhor ainda, leia Provérbios inteiro e reze por sabedoria. Agora eu preciso atender às minhas necessidades terrenas” – Padre Anselmo riu de sua própria espirituosidade, sentou-se com agilidade no birô e puxou a bandeja para perto de si, pigarreando, e prosseguiu olhando Vivian de cima à baixo: “Nos vemos na missa.”
Com relutância, Vivian foi se retirando em silêncio. Sua cabeça doía, a garganta estava seca, e devaneios autodestrutivos flutuavam em sua mente confusa.
Nesta mesma manhã, enquanto Martin partia, ela rezava de joelhos pela felicidade dele; sua ideia de amor puro era intrinsecamente ligado à abnegação. Para Vivian nada importava desde que ele fosse feliz – mas agora não tinha mais tanta certeza disso. Ela tinha interpretado todos os sinais como se fossem de origem divina: A alma pode escapar de seu aprisionamento corpóreo e retornar à sua fonte divina somente porque Deus cravou símbolos de si mesmo na alma, identificáveis no exterior por aqueles que souberem ver – contudo, tudo que ela achava que sabia sobre o amor e o divino pareciam agora meras ilusões de uma mente excessivamente sensível. Vivian sentia sua esperança se esvair como vapor – a imagem de Martin sentado em sua sala, tão orgulhoso e ao mesmo tempo gentil, já parecia um sonho distante; os sussurros proferidos, conscientes do eco da igreja, se tornavam pálidos na memória. Ele se perdia na névoa, enquanto ela restaria desolada em terra firme, olhando-o desaparecer no horizonte.
Ela caminhava para casa em transe; atônita, começava a entender a transitoriedade das pessoas, dos sentimentos. Acordara hoje tão resoluta, e agora enfrentava pela primeira vez na sua curta vida uma enorme perda de propósito. Quando dobrou a esquina, viu uma idosa sozinha sentada em uma cadeira na calçada, contemplando a rua vazia. Começou a imaginar como teria sido a vida dessa mulher, e o que teria acontecido para ela ter se tornado uma figura tão solitária nas sombras – solidão era, no fim das contas, a grande preocupação de Vivian, e o convento tal como ela idealizou impediria esse destino. Ela achou que a esta altura já estaria chorando, mas as lágrimas não vinham. Não era raiva pelo abandono de Martin que ela sentia, mas um enorme vazio. Ele não era quem ela pensava, era um covarde. Quanto mais recordava o passado, mais as palavras do jovem Padre lhe pareciam artificiais, e se um dia foram dotadas de beleza, Vivian agora achava que tal beleza tinha vindo dela mesma.
Chegando em casa foi direto para seu quarto – pequeno, escuro, discreto – e ao acender o abajur na mesa de cabeceira, ficou imóvel alguns segundos na penumbra, em meio a um silêncio palpável. A cama ficava junto à janela que estava aberta, e as cortinas brancas semi-transparentes se moviam como se estivessem vivas e respirassem lentamente. Em cima do travesseiro havia um envelope bege, meio amassado, e numa caligrafia cursiva bastante floreada, lia-se apenas: “Vivian”.