Nos últimos meses tenho reparado que, onde quer que eu esteja, seja na aula de direito tributário ou na manicure, eis que surge a frase: “isso ai acabou. tudo agora é digital. o futuro é a tecnologia; inteligência artificial; chat gpt; metaverso; etc etc”. “Isso ai” vale para qualquer coisa que exista fora da internet. Não sei quando ouvi pela primeira vez, mas depois de um tempo comecei a prestar atenção dada a recorrência, pois pessoas diferentes em locais distintos estavam todas repetindo a mesma sentença de morte. Particularmente, eu não aguento mais ouvir essa conversa. Sei que é irônico eu estar dizendo isso através da internet, mas essa não é justamente a grande ironia da época? Reclamamos das plataformas digitais através delas, afinal que outra forma sobrou?
Recentemente, li um artigo no The New Yorker com esse tom apocalíptico, o qual me deixou, no mínimo, abismada. O título era “The End of the English Major”, e só isso já me fez franzir as sobrancelhas. Primeiro que o autor do artigo não questiona esse tal fim, ele afirma mesmo. Queria eu ter tamanha sabedoria para não apenas prever como decretar um futuro onde uma graduação centenária e toda uma área de estudo e pesquisa foram erradicadas por serem consideradas obsoletas. Com certeza ele deve saber algo que ignoro, pensei, por isso resolvi ler até o fim, e o que eu encontrei foi uma opinião generalizada baseada num microcosmo, e pior ainda, emitida sem nuance alguma. Isso foi o que me motivou a escrever esse texto, e vou entrar nos pormenores do artigo mais adiante.
Pois bem, eu tenho plena consciência de que não, o passado não foi nem vai ser exterminado, pois é perfeitamente possível que os avanços tecnológicos possam coexistir com as práticas analógicas. Por exemplo, temos o Spotify mas muita gente da minha idade começou a colecionar vinil; temos câmeras no telefone mas agora é cool ter sua máquina fotográfica para postar um #35mm film dump. Passado e futuro não são excludentes, pois a nossa realidade é muito mais complexa que isso, e essa ânsia de otimizar o mundo, descartando tudo que não for de compreensão e utilidade imediata, sacrifica muitas sutilezas e subjetividades humanas.
Me preocupo com isso porque o discurso de alguns poucos começa a parecer que é de todos, e segundo eles, nesse tal futuro não há lugar para as Ciências Humanas. Contudo, aparentemente se ignora o fato de que essa fala é muito antiga, não é culpa do celular. T.S. Eliot, no prefácio de Leisure: The Basis of Culture (1948) do filósofo Josef Pieper, disse o seguinte:
Na época em que eu mesmo era estudante de filosofia - falo de um período de trinta e cinco à quarenta anos atrás - o filósofo estava começando a sofrer de um sentimento de inferioridade em relação ao cientista exato. Sentia-se que o matemático era o homem mais qualificado para filosofar. [...] Alguma familiaridade com a física contemporânea e com a biologia contemporânea também era favorecida: um argumento filosófico apoiado por ilustrações de uma destas ciências era mais respeitável do que um que não as possuía - mesmo que as evidências que as sustentavam fossem por vezes irrelevantes. (PIEPER, 1998, p. 9)
Tradução Livre; grifos nossos.
O lamento de Eliot tem mais de cem anos, desde então vimos uma sofisticação tecnológica que o poeta nem em seus piores pesadelos imaginaria, e ainda assim, as Humanidades permanecem. Todos os dias converso com pessoas que gostam desses assuntos tanto quanto eu, principalmente através do meu bookgram, onde conheci tanta gente incrível. Isso vale para lembrar que a internet pode contribuir muito com a comunidade literária, filosófica, etc. é só uma questão de como se usa essa plataforma — ela sozinha é inerte e inofensiva.
Acho que muita gente subestima o poder de uma narrativa, pois é muito fácil transformar qualquer coisa em “verdade”, só é preciso que um discurso repetido inúmeras vezes encontre espaço nas conversas cotidianas (tecnicamente isso seria uma pós verdade, mas isso é outra discussão), e o discurso da vez é que a tecnologia vai substituir “tudo”. É a mesma lógica do alerta vermelho: “o comunismo vem ai!”. Até hoje eu estou esperando e nada. Observamos, então, que é possível transformar a realidade a partir de uma suposição derivada de um medo ou de um deslumbre. No caso da tecnologia acho que há uma mistura dessas duas emoções.
Há um grande entusiasmo da minha geração com a I.A., imaginando um futuro onde tudo é extremamente prático, rápido e automático, e algo como o Chat GPT é responsável por todas as comunicações burocráticas e até pelas que não são. Só que existem consequências para essas transformações técnicas, e para mim a principal delas é a atrofia da habilidade de se comunicar, interpretar e raciocinar, três faces de um mesmo instrumento: a Linguagem.
Excessos nunca são bons, e atualmente vemos uma obsessão com racionalidade e praticidade, e um descarte de tudo aquilo que é mais abstrato ou “lento”, leia-se: qualquer atividade manual, intelectualmente trabalhosa, ou que tem o fim em si mesma. Essa obsessão considera que as evoluções materiais na tecnologia são capazes de suprir a necessidade natural do ser humano por aquilo que é subjetivo. Nietzsche, em O Nascimento da Tragédia, atribui a morte da tragédia grega de Ésquilo e Sófocles (que ele chama de arte Dionísica) ao nascimento da filosofia Socrática. A partir de Sócrates surge a ideia de que tudo poderia ser conhecido e justificado pela lógica, e o irracional mitológico da arte Dionísica foi descartado por ser “ilógico”. Contudo, considerando a visão de Nietzsche de que a existência humana é inexplicável, a ciência não é capaz de curar e prevenir esse vazio existencial, somente a arte pode cumprir esse papel. Assim Nietzsche buscou “justificar” a arte numa época que, tal qual a nossa, sofria profundas transformações tecnológicas.
Diante de toda essa mecanização da comunicação, e do suposto fato de que ninguém mais consome nada fora do celular, é que o artigo do The New Yorker deduziu o fim da graduação de Letras nos EUA (lá é English Major, que é como vou me referir adiante). O texto começa informando que na Arizona State University, quase metade de seus alunos de graduação são de origem minoritária, e um terço informou ser o primeiro de suas famílias a ir para a faculdade. Obviamente, a primeira coisa que nos chama atenção aqui é a situação socioeconômico dessas pessoas: para elas um diploma significa mobilidade social e melhores ofertas de emprego, principalmente porque nos EUA todo o aluno sai com uma dívida milionária dos custos dessa educação. Ademais, é de se esperar que em um país obcecado por “inovação”, a universidade (e a educação como um todo) sofrerá as consequências. O problema é que o autor do artigo assume equivocadamente que o que acontece no campus americano vale para o resto do mundo, aplicando as observações de um microcosmo para um macro — típico de americano achar que é o centro do mundo.
No atual contexto econômico, pouquíssimas pessoas podem se dar ao luxo de escolher uma graduação apenas pelo gosto pois o foco é empregabilidade, e é claro que as Humanidades são as primeiras a sofrer o golpe, já que não há investimento em pesquisa acadêmica para formar filósofos e historiadores, pelo menos não em comparação com o investimento em programadores. Mas, para o autor do artigo isso não é tão óbvio assim. Ele considera o fator econômico apenas como uma “teoria” e dedica somente um paragrafo à esse aspecto. Para ele, a justificativa para o decaimento dos alunos de Humanas é outra: nossa cultura simplesmente ultrapassou a necessidade das Humanidades.
Não acho que seja preciso uma investigação para a diminuição de alunos no English Major porque isso não é um mistério. Foi-se o tempo nos EUA onde era possível pagar um aluguel e uma feira modesta com um salário mínimo, e é claro que isso preocupa os estudantes. O caso é ainda mais complicado para esses alunos que são minorias ou filhos de imigrantes, que sentem uma responsabilidade para com a família e/ou comunidade, e um dever de ser “bem sucedido”. O English Major infelizmente não garante as mesmas oportunidades do que se formar em “bussiness” ou ciência da computação. Eu mesma decidi cursar Direito com o fator econômico em mente, porque na universidade do meu estado a graduação em letras é bastante precária se comparada ao resto do país, e simplesmente não há oportunidade de trabalho ou pesquisa acadêmica, esta última sendo meu grande interesse. Desse modo, a educação está sendo moldada pelo mercado, e nesse caso específico pela ideologia neoliberal americana.
Em seguida, o artigo trouxe depoimentos de alguns professores de Humanas, e o que me chamou atenção foi a baixa autoestima intelectual entre os próprios membros das humanidades, os quais em algum momento indefinível incorporaram o discurso daqueles que não entendem o valor da área. Fiquei consternada ao ler o relato de um Prof. Shapiro, dizendo que antes do celular ele lia em média 5 romances em um mês, e agora tem sorte se ler apenas 1, e a partir dessa experiência individual ele decretou que o mundo ficou assim também. O professor disse ainda que não pode mais passar Middlemarch para os alunos lerem, pois seria “uma tarefa impossível”.
É claro que o hábito de leitura diminuiu bastante se comparado há um século atrás, principalmente entre as gerações que nasceram com smartphone na mão, porém, também acho exagero dizer que leitores são uma espécie em extinção. Se eu encontrasse esse homem meu único argumento seria mostrar a ele as centenas de comunidades literárias que existem em todas as redes sociais, finalizando com o link da bem sucedida leitura conjunta de Middlemarch no Clube de Literatura Inglesa da professora Marcela Santos. É muito frustrante ver desistentes da área declararem que o mundo também desistiu. Foi um posicionamento um tanto catastrófico da parte dele, mas quero dar o benefício da dúvida e pensar que ele só não tem consciência do revival que a literatura teve nos últimos anos. Acho que há sim interesse nas Humanidades, só não há estímulo profissional e econômico, e essa culpa nem os professores nem os alunos carregam.
Infelizmente, a visão de Shapiro não é isolada: todos os outros professores entrevistados pelo The New Yorker deram relatos semelhantes. Foi aí que eu percebi como o problema das Humanidades é grave. Ninguém questiona para que um engenheiro estuda matemática ou para que um médico estuda biologia, mas todos questionam porque um linguista estuda semiótica. Se nós de Humanas não tivermos segurança na relevância do nosso trabalho e pesquisa, ninguém vai ter.
Não estou dizendo que as Humanidades são melhores ou mais importantes que as outras áreas, porque isso implicaria dizer que existe uma escala de importância onde essas coisas poderiam ser equiparadas e medidas, e eu não acho que exista tal coisa, e nem é preciso existir. Não quero fazer um jogo de comparações com as Humanidades, mas observar o valor delas em si, ao começar pelo fato de que a linguagem está presente em absolutamente tudo o tempo inteiro, mas a maioria das pessoas não se dá conta porque esses processos comunicativos — que por sinal são extremamente intricados — são automáticos.
A professora de Estudos Franceses da City College of New York, Nathalie Etoke, se posicionou sobre o assunto da seguinte forma:
Os números [de alunos] em declínio explicam uma dura verdade: as humanidades não oferecem as recompensas tangíveis defendidas pela cultura neoliberal americana. Não apenas isso, mas seu corpo docente as vezes também é culpado por contribuir com a polarização cultural e política de nossa era [lembram dos cortes de Bolsonaro nas universidades?]. Apesar de tudo isso, algo precisa ser dito em nome do valor da literatura na sociedade. O que acontece com uma sociedade que não deseja mais refletir sobre o que significa ser humano através da literatura? Como podemos pensar criticamente, interpretar e compreender a experiência humana se as humanidades se tornam irrelevantes? Uma sociedade que desvaloriza as humanidades, desvaloriza o humano.
Tradução Livre; grifos nossos.
Essa realidade é tão difícil de analisar quanto de lidar na prática. Por mais que eu esteja aqui dizendo que as Humanidades não vão sumir, a minha atitude é praticamente de resistência contra a falta de investimento, a recessão econômica, a I.A. etc. Como eu disse no início, Inteligências Artificiais como o Chat GPT são uma realidade, e é fácil demais criar uma dependência neste e terminar por atrofiar a capacidade comunicativa. Segundo a professora de Literatura Inglesa na Queens College, Talia Schaffer:
As pessoas estão lendo e escrevendo mais do que nunca no mundo digital de hoje, portanto, o estudo da Linguagem é mais crucial do que nunca. Cercados como estamos pela desinformação, teorias conspiratórias, redes sociais e chatbots, precisamos desesperadamente do que essa graduação oferece: o domínio dos textos. O English Major ensina como decodificar a linguagem, como produzir retórica eficaz, como reconhecer gêneros e representações, e como imaginar-se em contextos culturais alternativos. Estas são as habilidades de que precisamos para ser mentalmente saudáveis hoje. Portanto, é nada menos que trágico que o Estado tenha cortado o financiamento para o English Major.
Tradução Livre.
Então qual a solução? Não acho que exista uma única, mas acho que há um lugar por onde começar, e é na universidade. No artigo, um aluno que cursa História em Harvard argumentou que as humanidades “precisam ser mais rigorosas” porque elas não estabelecem padrões comparáveis às “coisas tangíveis que qualquer estudante que completa Estatísticas 110 ou Física 16 deve saber”. Ele disse ao jornalista que “pode-se facilmente ir embora com um 10 e não ter aprendido nada. Todos os estudantes de exatas têm esta atitude de que as humanidades são uma piada”. É claro que ele está generalizando, mas acho que é por ai mesmo. Acredito que essa falta de rigorosidade está atrelada à baixa autoestima intelectual, ambos sintomas da falta de estímulo em levar esse estudo a sério, inclusive pelos próprios humanistas, revelando, assim, a necessidade latente de reformar o ensino das Ciências Humanas. É preciso focar no reconhecimento de sua importância hoje, e parar de se apegar aos “anos dourados” onde professores com paletós de tweed e cachimbos discutiam Platão no gramado — se é que essa realidade existiu.
Contudo, não discordei do artigo do TNY por inteiro. Em dado momento o autor buscou investigar como está o ambiente acadêmico do English Major hoje, e ele observou o seguinte:
Alguns estudiosos observaram que, nas salas de aula atuais, o ato primário de criticar aparentemente carrega mais prestígio do que a longa busca pela compreensão.
Tradução Livre.
Certamente acho que isso é um problema que enfrentamos hoje nas Humanidades: a falta de nuance nas críticas, consequência ou da rapidez com que essa crítica é feita, ou da busca por um posicionamento moralmente superior. Um dos professores entrevistados (que a matéria fez questão de destacar que não era um homem velho e branco) disse que agora é mais gratificante para os estudantes apenas criticar algo como “problemático” do que lidar com o que poderia ser o problema: “eles parecem ter descoberto que a mera indicação de controvérsias tem mais valor, no mercado cultural de hoje, do que a curiosidade sobre o que está por trás”.
Considerando que tudo que fazemos e consumimos é público e portanto passível de escrutínio na internet, o que uma pessoa lê ou assiste se tornou o resumo de quem ela é, inclusive de seu caráter e valores. Se leio um livro de Judith Butler significa que sou feminista, e se leio Charles Bukowski significa que não sou. Se leio C.S. Lewis sou conservador cristão, mas se leio William S. Burroughs sou o oposto. Para mim essa lógica é extremamente danosa, e quem perde (muito) somos nós mesmos. Volta e meia me vejo citando Fran Lebowitz: “um livro não é um espelho, é uma porta” (vale a pena clicar no link). É paradoxal pensar que numa realidade onde nunca antes se teve tanta oportunidade de entrar em contato com algo desconhecido, diferente, com livros escritos há centenas de anos e por culturas diversas, exista tanta hostilidade com obras que não se enquadram perfeitamente no escopo moral e estético do nicho online no qual o indivíduo habita.
Isso se deve à concepção recente do livro como objeto de consumo, do leitor como consumidor, e do escritor não mais como artista, mas como prestador do serviço de entretenimento. É uma visão que me entristece bastante. Precisamos lembrar de uma das melhores coisas que um livro tem para oferecer: a ampliação de perspectiva. E ninguém amplia nada se ficar confinado aos ecos das próprias opiniões e experiências. É assim que criamos repertório e podemos fazer críticas substancias, cruzando referências e construindo uma visão única, algo que o Humanista precisa ter se quiser contribuir para o meio acadêmico.
Definitivamente há uma tendência de escantear obras que possuem “temas problemáticos”. Eu reconheço e concordo que precisamos ter a sensibilidade de reconhecer que certas representações são problemáticas, mas acho que falta refletir sobre como e porque algo num livro é problemático, e quando vale a pena “cancelar” a obra. Um exemplo pessoal: em 2021 eu tentei ler Lolita mas abandonei na metade, pois para mim a história era intragável, ao ponto de eu não conseguir mais apreciar a escrita de Nabokov, que é fantástica. Detestei o livro, doei a minha cópia, mas não é por isso que eu sou incapaz de reconhecer o valor literário, cultural e artístico da obra, e também não vou sair numa cruzada para cancelá-lo, porque eu sei muito bem que Lolita não e uma apologia à pedofilia. Já a Literatura Vitoriana Imperialista de Kippling à H. Rider Haggard é extremamente problemática pois ali sim há uma tentativa de diminuir uma cultura e justificar o colonialismo, mas ainda assim é necessário que se conheça verdadeiramente o objeto para poder fornecer uma crítica que acrescente ao repertório cultural da sociedade.
Saber discernir uma mera representação de uma defesa de algo problemático num texto é uma habilidade que se aprende no curso de letras, ou se você for dedicado, lendo bastante e estudando a Linguagem. Muitas vezes essa diferenciação não é óbvia, e é preciso exercitar o pensamento crítico e a interpretação, que como todo músculo, só é desenvolvido ao sair da zona de conforto.
Por fim, tem outra face da crítica que eu gostaria de abordar. As vezes quando pego um texto acadêmico para ler, eu noto um tom de orgulho do crítico quando ele encontra falhas em obras de grandes escritores. Sinceramente, acho que esse tipo de abordagem vêm de pessoas que esqueceram (ou nunca tiveram) o prazer de ler. Detesto quando querem menosprezar grandes livros ou pensadores numa tentativa pedante de afirmar a própria superioridade intelectual. Não estou dizendo para desconsiderar os pontos questionáveis de uma obra só por ela ser canônica, mas acho que uma leitura que só procura defeitos sob a falsa ideia de que uma crítica negativa é mais inteligente desestimula os alunos e cria maus leitores. “Críticos contemporâneos se orgulham no poder de desencantar”, disse um professor no artigo.
Nesse cenário, vejo as plataformas literárias no youtube, instagram, e até essa minha newsletter, como uma oposição positiva à essa desvalorização e pessimismo perante as Humanidades, e enquanto houver essas comunidades, existe a possibilidade das pessoas redescobrirem o prazer de apreciar — e não apenas consumir — a literatura.
Como eu estou na faculdade de Direito, um ambiente distintamente formal em comparação com o resto das Humanidades, achei válido trazer a perspectiva de uma pessoa que está de fato no ambiente acadêmico da comunicação, e por motivos pessoais dela irei me referir à entrevistada apenas como “M”:
Cult Classic: Bem, antes de tudo acho que é válido você se apresentar: qual seu curso de graduação, se você participa de algum projeto, qual sua área de interesse que te fez escolher esse curso…
M: atualmente faço comunicação social e jornalismo na UFPE; Não é meu primeiro contato com a universidade, fiz 2 anos de Direito antes e, durante a pandemia, percebi que não era para mim. Esse foi um momento que começou a aflorar em mim interesses que já existiam: arte, cultura, comportamento, sociedade, e a principalmente a vontade de falar sobre. Ai vou começar um PIBIC no próximo semestre e o tema é “capital especulativo e figuras midiáticas”; Antes de ingressar no curso atual eu criei um podcast de comentário cultura, e uma página no Instagram sobre série, filmes mas principalmente pessoas. Acho que essa é a minha grande paixão na verdade, falar sobre pessoas.
CC: O artigo do TNY argumenta que as Ciências Humanas, especialmente o estudo da literatura, está obsoleto. A partir da suas experiências na universidade, como você avalia essa situação? Você acha que tecnologias como I.A. vão substituir a comunicação feita por humanos?
M: Discordei muito desse artigo. Acho que enquanto houver humanidade vai ter ciências humanas. Obviamente que não vai ser uma coisa com uma rentabilidade tão imediata, acho que é inclusive uma conspiração do neoliberalismo para destruir a nossa sociedade (risos). Não acho que o sistema de I.A. vai substituir jornalistas ou qualquer outro cientista social; é muita petulância você achar que um robô vai roubar nossas faculdades mentais, mas numa certa medida pode acabar com o trabalho extremamente mecânico, por exemplo o modelo de jornalismo tradicional impassível. Até porque para mim jornalismo é muito mais uma possibilidade de reflexão e análise, e precisa de subjetividade – como o New Journalism dos anos 60, é muito mais interessante uma perspectiva como a da Joan Didion. Nenhuma inteligência artificial pode ter um alcance reflexivo assim. Nenhuma máquina pode ter abstração para falar de literatura; papo burro desse escritor do TNY (risos).
CC: É inegável que existe uma desvalorização geral das humanidades na nossa cultura. Eu acredito que a universidade é o lugar ideal pra tentar mudar isso. Como você lida com pessoas que menosprezam ou não compreendem a sua área de estudo? Você acha que é necessário uma “resistência”?
M: Acho que existe sim a desvalorização. Hoje em dia com esse culto à personalidade virtual, ou com a comodificação da personalidade, todo mundo tem uma opinião sobre tudo mas falta uma apuração: temos um grande excesso de pessoas fazendo comentários sociais mas sem base sólida, o que enfraquece a produção de ciência humana. Temos que fortalecer isso, mas de que forma? A resposta é aquele papo meio clichê: com o apoio do Estado, com investimento à pesquisa; Não sei se nós como cidadãos civis podemos fazer algo. Eventualmente você pode até se esforçar e procurar se educar por si mesmo, publicar de forma independente, mas sem investimento só casos pontuais vão surgir e não chegaremos a uma comunidade acadêmica forte. A “resistência” é continuar produzindo né? Mesmo que pareça que não vá dar em nada; enquanto houver quem queira contribuir para as ciências humanas, pode não ter investimento mas vai ter gente para ouvir.
CC: No artigo do TNY, é mencionado uma problematização excessiva dos objetos de estudo das Humanidades, apontando para o "orgulho que os críticos atuais têm em desencantar". Você caracterizaria o ambiente acadêmico dessa forma? Como é o comportamento crítico dos alunos em relação à isso?
M: Eu entendo que não posso me sobrepor a experiencia sensível de uma pessoa, mas acho que existe uma demanda opinativa – todos precisam ter uma opinião, mas ninguém tem tempo de investigar porque ela pensa assim. Ai chegamos na postura de “não vou ler tal livro e ponto”, sem tentar analisar a relevância que aquilo pode ter para além do autor; um clássico é relevante por N motivos, são obras multifacetadas, é um excelente referencial teórico, histórico, cultural e social de uma época. Se por um lado eu entendo que uma pessoa não quer se sentir obrigada a ler algo, afinal quem sou eu para demandar isso, por outro acho que falta se questionar “porque eu não devo ler isso?”. Existe uma busca por uma “ética cibernética” no nicho que você habita, como se precisasse estar em conformidade com as “normas” daquela comunidade. Acho que o movimento de problematização é meio paradoxal, pois quanto mais as pessoas problematizam parece que elas estão menos dispostas a investigar o porquê de ser problemático, e se é passível de descarte por esse motivo. É como se a pessoa atingisse um limite raso na esfera da problematização que lhe fecha para outras perspectivas sobre aquilo que se está negando.
CC: No texto eu falo sobre a baixa autoestima intelectual e um pessimismo generalizado entre os acadêmicos de Humanas, principalmente entre professores. Você observou esse comportamento neles? e entre os alunos?
M: Sinceramente, o pessimismo generalizado vai além de qualquer coisa no curso de ciências humanas. Muitos professores são completamente desmotivados e não conseguem nem propor uma discussão porque é como se para eles aquilo já tivesse perdido a serventia; Mas não são todos (ainda bem). Tenho uma professora que admiro muito, que nos seminários ela interrompe e foca numa coisa que o aluno falou e tenta extrair mais daquilo, em cima de uma discordância ou equívoco etc. Acho que essa é a forma certa sabe? A gente precisa dessa forma mais rigorosa para que a gente possa realmente produzir ciência. Se o professor não se importa com aquele tema o aluno termina por absorver essa atitude. Tem professores que dizem pra gente “ah o que vocês tão fazendo aqui? vocês vão ganhar 3 mil reais, tão sabendo?”, isso é desmotivante. De fato não é fácil, tem que ter o pé no chão, mas ficar com atitude derrotista não ajuda ninguém; Bem, fazendo um recorte de classe, eu vejo que certos alunos, por viverem numa realidade mais difícil, não tem acesso a um tipo de informação abstrata, ou a objetivos que sejam mais ambiciosos. Sair daquele contexto vai se tornando tão intangível que essas pessoas não se veem “capazes” de ler certos livros ou assistir certos filmes. As vezes não é nem sobre o livro ser X ou Y, é como se a pessoa achasse que aquilo não é para ela, e é algo que me deixa muito triste. Isso mostra a desigualdade cultural dentro da universidade, e por isso que a gente precisa que o curso que incentive a construção de um repertório para além da necessidade prática. Se eu pudesse fazer alguma coisa pela educação, seria tentar fazer com que essas pessoas se imaginem em lugares que elas nem cogitam.
CC: Para você, qual a coisa principal que precisa mudar no ambiente acadêmico das Humanidades?
M: Sinto falta de um aprofundamento maior em algumas questões. Nos cursos de Humanas existe uma liberdade muito grande do aluno falar o que quiser, e ficar por isso mesmo. Acho que é imprescindível a participação, mas a discussão não pode acabar na opinião do aluno. O professor precisa estimular a gente a aprofundar e questionar essa perspectiva, não pode ter medo de “contrariar”. É aquilo que falei antes, admiro muito minha professora que não hesita em parar tudo para corrigir e dar um aparato teórico para qualquer coisa que é dita em sala, tanto se ela discordar quanto se concordar. Em outras aulas o debate acaba na superfície do problema. Percebo também um equívoco quanto ao que é “lugar de fala”: é muito importante ter isso em mente, mas muita gente acha que isso é impedir pessoas que não estão naquela posição de dialogar sobre esse assunto. Obviamente não acho que teoria se sobrepõe a vivência, mas também não acho que vivência é o saber máximo. Acho que a superficialidade vem muito dessa nova postura cultural, na qual as pessoas querem emitir uma crítica no menor número de caracteres possível.
Bem, espero ter inspirado questionamentos ou pelo menos uma vontade de provar que o New Yorker estava errado. Espero também que tenham gostado do texto divergindo um pouco das análises literárias que faço. Talvez eu escreva mais alguns assim no futuro, quem sabe?
Boas leituras, bom feriado, e até a próxima :)