O Mestre e Margarida: às Portas da Percepção
"If the doors of perception were cleansed every thing would appear to man as it is, Infinite. For man has closed himself up, till he sees all things thro' narrow chinks of his cavern.” - William Blake
Portuguese edition
Talvez o maior desafio que O Mestre e Margarida apresenta, tanto para o leitor comum quanto para os críticos, é o de como defini-lo. De que tradição literária ele é parte? É uma alegoria bíblica, uma brilhante sátira política, um romance simbólico ou uma fantasmagoria do realismo mágico? É possível ser tudo isso ao mesmo tempo? Depende do ponto de vista. O que posso dizer é que não é uma obra para quem possui uma mente literal ou pouca imaginação — é necessário que o leitor tenha certo desprendimento e um ouvido apurado para a ironia.
Bulgákov não nos contextualiza nem espera que o leitor se familiarize com as leis de seu universo, pois logo nos dois primeiros capítulos nos deparamos com situações logicamente impossíveis: homens se materializando no ar, cabeças decepadas rolando pela rua, cafés da manhã com Immanuel Kant e, o mais impressionante, uma testemunha ocular da condenação de Jesus por Pônicio Pilatos. Nesse momento, percebi que o autor não iria me explicar muita coisa, então decidi aceitar tudo que o livro fosse propor dali em diante, e garanto que a experiência foi mais divertida assim.
O romance é formado por duas narrativas paralelas. A primeira (e a mais difícil de explicar) se passa na Moscou da década de 1930, e começa com o séquito de Woland (Satã) chegando à cidade, aparentemente sem nenhum propósito claro, a não ser criar o caos. Esse grupo demoníaco é responsável por mortes, internações manicomiais, uma apresentação teatral catastrófica, circulação de dinheiro falso, incêndios e prisões. A segunda trata dos últimos dias na vida de Jesus Cristo, mas na perspectiva de Pôncio Pilatos, o Procurador da Judéia responsável pela condenação e crucificação do messias. Com tantos elementos “sérios” e obscuros, poderia-se supor que o livro teria um tom pesado, mas não é o caso: Bulgákov é um mestre do humor, e o sentimento lúgubre só é explorado de fato em dois momentos, que coincidem na narrativa: a crucificação de Cristo e o relato do passado do Mestre.
Não pretendo abordar o livro por inteiro e, como sempre, vou focar apenas em um aspecto que me chamou atenção. Até porque, como disse o crítico literário W. J. Leatherbarrow, o máximo que o crítico que encontra este romance pela primeira vez pode esperar é contribuir de forma construtiva para a confusão.
Para mim, a grande sacada de Bulgákov consiste na forma de abordar a verdade a partir de percepções diversas e subjetivas, a ponto de modificar os conceitos de bem e mal dependendo de quem narra a história. Considerando que O Mestre e Margarida é uma sátira do regime ditatorial de Stalin, um governo ultra-institucionalizado e caracterizado pela manipulação da verdade através da propaganda e da censura, as cenas envolvendo burocracias ficam ainda mais cômicas e trágicas. Vejamos esse trecho:
– De qualquer maneira, vão dar por minha falta no hospital – acrescentou, timidamente, a Woland.
– Ora, como vão dar pela falta? – tranquilizou-o Korôviev, e uns papéis e livros surgiram em suas mãos. – Esse é seu prontuário?
– Sim.
Korôviev lançou o prontuário na lareira.
– Não havendo documentos, não há também pessoa – Disse Korôviev, satisfeito –, e esse é o registro de locatários do seu construtor?
– Pois sim…
– Quem está registrado nele? Aloízi Mogarytch? – Korôviev soprou a página do registro de locatários. – Pronto, não está, e peço notar que nunca esteve. E se o construtor ficar surpreso, diga-lhe que sonhou com Aloízi. Mogarytch? Que Mogarytch? Não tinha Mogarytch nenhum. – Daí o livro encadernado evaporou das mãos de Korôviev. – Agora ele já está na mesa do construtor.
– O senhor está certo ao dizer – disse o mestre, espantado com a perfeição do trabalho de Korôviev – que, não havendo documentos, não há também pessoa. Pois eu não tenho exatamente isso, não tenho documentos.
– Desculpe-me – gritou Korôviev –, mas isso é exatamente uma alucinação, eis o seu documento…
Durante todo o livro, documentos são requisitados e usados como ameaças ou provas, e a institucionalização da burocracia é tão profunda que a própria realidade depende dela, ao invés do oposto. Como vemos no diálogo acima, não importa se o construtor conhecia Mogarytch e falou com ele centenas de vezes. Com o sumiço do documento, a realidade experienciada é percebida como falsidade ou ilusão. É o que explica Korôviev (o equivalente ao Mefistófeles de Fausto): se a verdade não estiver de acordo com a burocracia, ela não passa de um sonho.
A burocracia num governo ditatorial como o da Rússia stalinista é mais do que um sistema de organização, ela é responsável por ditar as expectativas – a realidade tem que se dobrar à burocracia, e aquilo que está diante dos olhos não pode ser crível sem o devido suporte documental. A sátira de Bulgákov, bem como de muitos autores russos da época, emerge de um angustiante desencanto com um governo rebelde, o qual, a princípio, prometia libertar a Rússia, mas só fez substituir uma opressão por outra menos glamurosa. Como explica Leonard Freedman: “durante a maior parte da era soviética, os satíricos políticos estavam constantemente sob um ataque que era muito mais intrusivo do que qualquer outro realizado pelos censores sob os czares”.
Desse modo, o livro é permeado por uma inquietação envolvendo a realidade e a verdade como algo manipulável, não absoluto, que depende da percepção. Essa manipulação ocorre de dois modos complementares: moldadas por forças burocráticas, como já mencionado, ou o contrário, no qual as leis do Estado (e até as leis da física) são dobradas pela magia demoníaca para acomodar a realidade fantástica criada por Woland e seus capangas. No intervalo de poucos dias, um manicômio em Moscou recebe dezenas de novos pacientes por conta dessa manipulação, pois os que tentam dizer a verdade, explicando às autoridades os truques mágicos e implausíveis de Woland, vão para o manicômio (estranhamente similar à história d’O Alienista de Machado de Assis).
Portanto, a verdade e a mentira simplesmente não existem neste mundo, são apenas nomes vazios usados quando convém. A maior vítima desta situação é o Mestre, o “paciente zero” do manicômio, por ter escrito um livro reimaginando o caráter de Pilatos e a história de Jesus, pelo qual ele foi duramente perseguido pela imprensa e órgãos de censura. O Mestre é baseado no próprio Bulgákov, que também tentou queimar o manuscrito da obra em discussão, e sofreu psicologicamente com a perseguição de seus escritos.

Pois bem, O Mestre e Margarida inicia com o encontro entre Woland e dois poetas (Berlioz e Bezdomny) que discutiam sobre a existência histórica de Jesus. Ao expressarem uma incredulidade ateia, Woland explica aos escritores que, na verdade, Jesus (na obra, Yeshua) existiu, e procede com um testemunho em primeira pessoa dos eventos do Novo Testamento. No começo, a história de Pôncio Pilatos e Yeshua parece invenção do demônio. Mas depois Bulgákov revela que essa história é, na verdade, o livro censurado do Mestre. A inserção dessa dupla narrativa não é por acaso, pois os capítulos de Jerusalém são o complemento e a analogia perfeitos para o núcleo russo do romance. Os problemas que o Mestre enfrenta na Moscou do século XX já foram enfrentados por Yeshua quase dois mil anos antes – o autor nos diz, assim, que todo século tem seus sonhadores quixotescos.
Um dos grandes temas desse livro é a disputa entre a criatividade e a mediocridade: Bulgákov usa o Mestre para traduzir esse conflito interno, retratando um homem “derrotado” mas que possui uma grandeza em sua inquietação, no desejo de transcender as limitações daquilo que é mundano e que procura ancorá-lo no realismo (ou naquilo que o Estado stalinista, bem como a sociedade em si, determinou como real e moralmente aceitável). Nesse contexto, a luta do Mestre para conseguir criar e dar voz a sua expressão é um esforço deveras romântico.
Esse ideal romântico nasce da insatisfação com a própria vida (e, no caso do artista, com a própria obra), bem como de um desejo de remodelar o externo para curar o interno, refazendo a realidade de acordo com seus princípios. Nesse caso, a justificativa do Mestre em querer manipular a “verdade” da história de Pilatos – retratando-o não como um vilão e sim um homem em profundo conflito – é mais nobre do que a dos burocratas ou do Satã em pessoa. Porém, ele é o único punido. Ao colocar essa questão no centro do romance, Bulgákov afirma o poder da imaginação/percepção em uma época infinitamente mais rígida do que a Espanha de Cervantes, a Inglaterra de Shakespeare ou a Rússia de Púshkin.
A obra é rica em paralelos simbólicos, sendo o mais significativo aquele entre Yeshua e o Mestre, visto que eles são visionários perseguidos por defenderem suas causas. Yeshua, inconformado com o templo de Caifás e o governo de César, prega uma nova realidade, “o reino da verdade e da justiça, onde não será necessário poder algum”. Ambos anseiam pela verdade pura, na qual a percepção da sociedade não é constantemente manipulada por autoridades; ambos buscam realizar este feito através da palavra.
– E o que você disse? – perguntou Pilatos. – Ou você vai responder que esqueceu o que disse? – mas o tom de Pilatos já era de desespero.
– Dentre outras coisas, disse – contou o preso – que todo o poder é uma violência contra as pessoas, e que chegará o tempo em que não haverá poder nem dos Césares, nem qualquer outro. O homem chegará ao reino da verdade e da justiça, onde não será necessário poder algum.
Tanto Yeshua quanto o Mestre engajam discretamente na tarefa de imaginar realidades alternativas – discretamente, pois nenhum deles exibe a força violenta do rebelde atuante: Yeshua, apesar da acusação contra ele, não tentou realmente destruir o templo de Jerusalém, nem o Mestre desafia ativamente o militarismo filistino de sua época. Um prega e o outro escreve, nenhum recorre à técnicas de guerrilha. O poder revolucionário de românticos como eles é muito mais sutil do que a revolta declarada. A partir da manipulação da verdade, eles terminaram sendo categorizados como loucos, criminosos e tragicamente descredibilizados.
Contudo, Bulgákov não está escrevendo uma tragédia, e, no fim, os injustiçados alcançaram sua paz merecida. Tanto Yeshua quanto o Mestre são ressuscitados (curiosamente, um foi por Deus e o outro pelo Diabo) para testemunhar a realização daquilo em que acreditaram: Yeshua dá as boas-vindas a Pilatos em seu reino de verdade e justiça após a morte, enquanto o Mestre está livre da perseguição artística e da alienção por isso causada, vivendo o resto de seus dias na companhia de sua amada Margarida. Assim como Yeshua deixa Mateus como seu discípulo, o trabalho do Mestre é continuado pelo recém-inspirado Ivan Bezdomny, um dos poetas abordados por Woland no início do livro, e o primeiro depois do Mestre a ser enviado para o manicômio.
Algo que fiquei refletindo após concluir a leitura foi por que Pilatos. Por que o Mestre escolheu escrever sobre esta figura em particular? Na verdade, por que Bulgákov escolheu? Isso não fica explícito, mas acredito que o Mestre (e, por tabela, o próprio autor) viu parte de si mesmo em Pilatos, ao interpretá-lo como um homem incompreendido, agonizando em dilemas morais, submetido aos instrumentos do poder do qual faz parte, vencido pela covardia. Temos que lembrar que o Mestre nunca se viu como herói – muito pelo contrário, ele lamenta sua própria fraqueza por ter queimado o manuscrito de seu romance e abandonado Margarida. Considerando os paralelos entre Yeshua e o Mestre apontados até aqui, a última frase dita por Cristo tal como relatada por Mateus é profundamente significativa, e não é à toa que deixou Pilatos extremamente abalado:
– Não tentou pregar alguma coisa na presença dos soldados?
– Não, hegemon, não foi eloquente dessa vez. A única coisa que disse foi que, dentre os vícios humanos, considerava um dos principais a covardia.
É na diferença abismal entre o comportamento público de Pilatos e seus sentimentos privados que se encontra sua covardia. Pilatos teme defender, perante o Estado Romano, sua compaixão e admiração por Yeshua, e assim poupá-lo da crueldade que no fundo ele sabe ser injusta. Por conta dessa inércia covarde, Yeshua é condenado e crucificado. O que Pilatos não imaginava é que ele estava, na verdade, se auto-condenando a uma eternidade de amarga e solitária penitência, enquanto aguarda o perdão do messias.
Em menor escala, o crítico Latunsky se sente obrigado a atacar o Mestre porque ele ultrapassou os limites da aceitabilidade literária definida pelo Estado soviético. Em ambos os casos, vemos a negação da iniciativa e da responsabilidade pessoal, pois o ser humano se despoja de sua humanidade e se torna um instrumento de controle do Estado, submetendo-se à manipulação da percepção do que é bom e verdadeiro. No fim, boa parte dessa história é uma complexa metáfora para a injustiça.
O Mestre e Margarida faz o leitor questionar se existe algo tão ideal quanto a verdade, ou tão puramente objetivo como a realidade. Bulgákov parece sugerir que o realismo literário é, de fato, menos real do que esta absurda sátira política. Através de inúmeras distorções da percepção, tanto do próprio leitor quanto dos personagens imersos no redemoinho de improbabilidades que é este livro, o autor cria com sucesso um experimento literário diferente de tudo que já li ou ouvi falar. Para mim, é um livro mais honesto e verídico do que qualquer obra de Dickens, por exemplo, e demonstra que o fantástico não só altera a percepção da realidade, como também revela verdades sobre ela.
E por fim, uma transcrição do poema escrito na ilustração, de onde veio o termo “Portas da Percepção”
The ancient tradition that the world will be consumed in fire at the end of six thousand years is true, as I have heard from Hell.
For the cherub with his flaming sword is hereby commanded to leave his guard at [the] tree of life, and when he does, the whole creation will be consumed and appear infinite and holy, whereas it now appears finite and corrupt.
This will come to pass by an improvement of sensual enjoyment.
But first the notion that man has a body distinct from his soul is to be expunged; this I shall do by printing in the infernal method by corrosives, which in Hell are salutary and medicinal, melting apparent surfaces away, and displaying the infinite which was hid.
If the doors of perception were cleansed everything would appear to man as it is, infinite.
For man has closed himself up, till he sees all things through narrow chinks of his cavern.
Referências:
Stenbock-Fermor, Elisabeth - Bulgakov's The Master and Margarita and Goethe's Faust
Freedman, Leonard - Wit as a Political Weapon: Satirists and Censors
Ludwig, Jonathan - The Master and Margarita: A Fantasy of Redemption
ansiosa demais para lê-lo!!!