Notas sobre a Vontade de Dizer
O bloqueio criativo, a inspiração cotidiana, a escrita como jardinagem - muitas perguntas e nenhuma resposta.
Hoje é o último dia de maio, o sol pálido surge depois de dias de chuva pesada e me faz querer dormir de janela aberta pelo resto da tarde, mas decidi sentar na minha escrivaninha e persistir nesse texto por conta da agonia que estou sentindo depois de 55 dias sem escrever nada. Escrever textos pro Methinks não é uma obrigação e também ninguém me paga para isso, mas eu me vejo constantemente remoendo ideias que são (ou não) boas o suficiente para compartilhar, e fazendo esforços para voltar aqui. Certamente escrever me fornece algo que eu quero, mas o que?
Não sei dizer ao certo, mas agora apostaria no êxtase de criar algo e materializar meus pensamentos, o que acho viciante principalmente porque amo sentir que estou “fazendo alguma coisa”. Essa frase deixa subentendido que na maior parte do meu dia sinto que “não estou fazendo”, ou que estou perdendo tempo de alguma forma. Joseph Pieper em seu livro Leisure: The Basis of Culture explica que essa culpa por não estar o tempo todo num estado de produção é graças à lógica comercial Protestante – confundimos “ócio” com uma preguiça imoral, e vemos como inerentemente “bom” tudo aquilo que veio do esforço.
A partir dessa perspectiva, e considerando que como todos nós eu também passo horas irrecuperáveis no meu celular, a agonia de estar “desperdiçando” meu tempo é constante, mas em comparação com as pessoas que conversei parece que estou agonizando mais. Provavelmente porque fui uma grave vítima do vício em produtividade e do discurso de “self-improvement” que atingiu o auge em 2021, do qual ainda não consegui me desvencilhar.
Se a minha escrita não for laboriosa e complexa, cheia de camadas e referências, ela tem valor? A partir desse questionamento percebi meu medo de ser óbvia e “simples”, e por isso me contraí durante semanas diante do computador, esperando que surgisse uma perspectiva original (e com certeza genial) que fosse digna de compartilhar no oceano de grandes textos que há no universo da internet. No meu último ensaio eu disse que sou uma consumidora compulsiva de artigos/ensaios, e apesar de ter melhorado nesse aspecto, sigo me comparando com outros criadores e pensando “para que eu vou dizer X se essa pessoa já disse melhor do que eu?”.
Esperar pela grande “eureka!” pode ser muito perigoso para um escritor, pois a partir dessa espera é que se cria raízes no poço sem fundo do bloqueio criativo. Normalmente, meus melhores textos (e os que ficaram prontos de imediato) foram aqueles em que eu tinha um ímpeto obsessivo de falar sobre algo agora, caso contrário aquilo iria ficar martelando na minha cabeça até que eu o colocasse para fora. Sei que isso soa romântico e meio amador, mas é a realidade do meu espírito compulsivo e mentalidade meio desesperada. Se eu for guiada apenas pela enorme vontade de dizer eu me preocupo menos em ser “original e brilhante”, e fico livre do perfeccionismo e paranoias criteriosas que surgem inevitavelmente depois de muita prática. O problema é que ultimamente nada me moveu o suficiente para que eu precisasse sentar e escrever – o que me deixou aflita.
Agora que abordamos esse lado melodramático da minha escrita, vamos ao lado prático. Como todos os ofícios humanos, dominar algo é mais sobre hábito e disciplina (palavra que foi deturpada pelos coachs) do que rompantes de genialidade. Muito me interessa pensar sobre o ato de criar, principalmente no mundo de hoje, onde sentimos que estamos sendo assistidos – ou até mesmo gravamos nossas atividades para postar um “spend the day with me” no tiktok – e por isso escrever (ou pintar, ou tocar um instrumento, ou costurar etc) se torna também uma performance. Se eu não pareço com Carrie Bradshaw enquanto digito meus comentários espirituosos e pertinentes, ou com Jo March escrevendo à mão no sótão noite adentro como uma maníaca tomada por uma ideia, então eu devo estar escrevendo errado. Essas visões romantizadas atrapalham muito qualquer hobby, pois parece que para ser alguém que faz tal coisa, você precisa parecer com alguém que faz essa coisa.
Não tenho sido nem muito menos parecido com alguém que escreve – não tenho escrito em bibliotecas neoclássicas, nem em cafés charmosos, nem no meu mini apartamento esteticamente bagunçado em Nova York. Na verdade não tenho saído muito de casa. Constantemente me pergunto se esse fato não seria o responsável pelo meu bloqueio criativo: será que eu não estou “vivendo” o suficiente e é por isso que eu não consigo ter inspiração para escrever? Mas se a rotina doméstica não é “viver" então o que estamos fazendo entre um grande momento e o próximo?
Numa entrevista, Louise Glück disse que a vida do poeta oscila entre êxtase e agonia, e o que atenua esses extremos é o necessário cotidiano da vida: “amigos, conversas, jardins. A vida cotidiana. É o que temos. Eu acredito no mundo. Confio nele para me prover”. Se queremos criar algo verdadeiro, somos obrigados a extrair beleza e horror do mundano, porque o dia a dia é a verdade, mais real que os momentos marcantes. Imaginem que aflição seria se todos os dias ocorresse algo grandioso? Ou iríamos à loucura ou ficaríamos insensíveis às coisas importantes.
Durante esses 55 dias inertes, eu não estava com vontade de fazer um texto acadêmico, queria escrever algo sobre mim mas que na verdade seria sobre todos, alguma experiência individual que se mostrasse universal – com certeza uma vontade ambiciosa e muito comum entre artistas. Obviamente, começar um texto com essa intenção é a melhor forma de garantir que esse objetivo não será atingido. Só me restava uma opção: escrever sobre a minha frustração com o ato de escrever. E aí percebo que abri uma caixa de pandora pois eis que surge outro problema: como conciliar a vontade de agradar o leitor com a necessidade de escrever algo genuíno e relevante para mim? O que me levou a mais um questionamento: porque sempre acho que o que eu quero dizer não é o que os outros querem ouvir?
Pois bem, até uma semana atrás eu estava quase desesperada por mais um insight como o do texto sobre andar a pé, e comecei a pensar que todas as coisas boas que produzi foram por sorte, e não há instrumentos para fazer a criatividade atuar novamente, como se ela fosse uma entidade independente que só aparece quando quer. Passei a considerar se os gregos não estavam certos e as musas realmente existem, e a falta de sacrifícios para Calliope estava causando o meu período de escassez. Não que eu não tivesse ideias para escrever, ideias não faltam. Mas a inspiração, as palavras necessárias para algo ser dito – elas sim fugiam de mim enquanto eu tentava impor minha vontade.
O problema com essa abordagem desgovernada, onde há vontade mas não há estrutura, é que é muito fácil ficar paralisada diante do conceito: eu vejo o texto perfeito na minha cabeça e a mensagem que eu quero passar, e isso é suficiente para que eu nunca o coloque no papel, porque a única forma de algo ser perfeito é se ele só existir na minha cabeça. A linguagem sempre é um instrumento imperfeito, e o que eu quero dizer e o que eu digo de fato nunca serão totalmente correspondentes. Em Da Interpretação, Aristóteles chamou a escrita de defeituosa e a considerou como meros “símbolos de palavras faladas” (Aristóteles I.I6a:3).
O medo de ser entediante ou irrelevante é uma certeza para pessoas que fazem o que eu estou fazendo (tenho certa hesitação em dizer “escritora” porque acho que não sou digna do título, pelo menos ainda não). Ao longo do tempo, acumulei muitos interesses específicos que amo profundamente, mas que sei que não interessam a maioria das pessoas, mas eu sempre tive esse problema. Uma forma de tentar superar isso foi criar esse espaço, e por mais que o medo tenha diminuído ele ainda existe. Mas o medo de nunca mais escrever foi muito maior do que qualquer outro – na minha cabeça, se eu continuasse adiando ia chegar uma hora que essa newsletter ficaria abandonada por pura negligência, o que é absolutamente ofensivo aos meus princípios: se eu me proponho a fazer uma coisa eu vou fazê-la não importa o que. Eu simplesmente tenho que terminar o que eu começo se não eu não fico em paz.
Nem todo mundo acha isso uma virtude, mas eu sou muito grata por esse traço de personalidade. Às vezes ele me impede de desistir mesmo quando estou pronta para abandonar a causa. Claro que é preciso saber filtrar o que vale a pena, mas isso aqui é algo que eu tenho plena certeza que vale. Como posso atingir meus próprios critérios se eu não exercitar a escrita? Preciso fazer incontáveis textos medíocres antes de fazer algo bom, e preciso perder a vergonha deles serem medíocres, porque afinal, pelo menos eu fiz e isso já é motivo de orgulho para mim.
Se eu não sentisse prazer em estar digitando meu monólogo interno no google docs certamente eu encontraria um jeito de concluir este projeto e me despediria com a consciência limpa. Mas eu gosto demais de compartilhar meus pensamentos e interesses para desistir na primeira falta de inspiração. Ler e escrever são como jardins. Você pode plantar algo de si durante esses processos e em troca aquilo se transformará em algo substancial – de qualquer forma, a colheita acontece independente da qualidade do fruto. Escrever sobre o cotidiano é precisamente ver algo inconsequente florescer.
A boa escrita, para mim, é aquela que consegue descrever aquilo que todos nós sabemos e sentimos mas não conseguimos por em palavras, culminando no delicioso momento em que, olhando para a página, podemos dizer em voz alta: “meu deus é mesmo!”. Essa identificação que acontece entre mundos e pessoas há séculos e quilômetros de distância é uma das experiências mais bonitas que se pode ter como pessoa, e é um privilégio poder causar isso em alguém. Acho que todo ato de escrever é fazer uma triagem de memórias, tanto vividas quanto lidas, e escolher quais valerão a pena cultivar. Essa comparação entre escrita e jardinagem certamente não é original minha, não lembro exatamente de onde veio, mas talvez de Mary Oliver.
Falando em Mary Oliver, gostaria de me despedir com uma frase dela, que acho que resume a perspectiva que tentei apresentar aqui: “Como falo no Poetry Handbook, a disciplina é muito importante. O hábito – acho que somos criativos o dia inteiro. Temos de ter um compromisso, de colocar esse trabalho na página, porque a parte criativa de nós se cansa de esperar, ou simplesmente se cansa. E isso tem ajudado muitos estudantes, jovens poetas, a fazer isso – ter esse encontro marcado com essa parte de si mesmo, porque há, é claro, outras partes da vida.”
Recomendações & Inspirações:
Learning to Value - vídeo no YouTube
The Answer is Not a Hut in the Woods - vídeo no YouTube
Tom Jones (2023) - minissérie da PBS
The Work You Do, The Person You Are - Ensaio da Toni Morrison para o The New Yorker
O Feiticeiro de Terramar - Livro da Ursula K. Le Guin
Tea For The Tillerman (1970) - Album do Yusuf/Cat Stevens
The Discarded Image - episódio do meu podcast preferido, o Classical Stuff You Should Know
The Merchant Ivory Films - de 1961 à 2005 os cineastas Ismail Merchant e James Ivory se juntaram para produzir e dirigir dezenas de filmes de época, a maioria adaptações de obras de E. M. Forster e Henry James. Esses filmes se parecem uns com os outros e são muito mais atmosféricos do qualquer coisa; não sei dizer exatamente porque estou obcecada por eles, mas são visualmente belíssimos e eu gosto da sensação que eles passam.
Obrigada por ler o Methinks! Não deixe de curtir o post e compartilhar se você gostou <3