Há alguns anos, no auge da estética Tumblr 2014, era comum ver pessoas postando (de forma não irônica, vale mencionar) em seus perfis nas redes sociais poemas “instagramáveis”: curtos, de rápida assimilação e que tentam transmitir uma mensagem profunda em poucas palavras banais, normalmente mandando uma indireta a um ex ou anunciando uma nova era de poder e autoestima. Embora essa prática tenha se tornado “cringe” atualmente, visto que os poemas originais de Rupi Kaur estão em declínio, seus herdeiros seguem firmes, agora falando sobre “girlhood” com termos emprestados da psicanálise.
Esse tipo de poesia que, doravante, chamarei de “poema mainstream”, é alvo de disputas calorosas na internet: de um lado, os defensores que jogam o bordão “let people enjoy things” e argumentam – de forma muito válida – que o alvo das críticas mais pesadas são sempre os objetos culturais voltados para mulheres jovens; do outro, os apocalípticos que colocam Kaur, Gabbie Hanna, dentre outras, como as maiores culpadas pela “morte da literatura”. Não acho que seja uma coisa nem outra, mas sim que o problema está mais na forma de lidar com esse tipo de estrutura do que na defesa ou acusação de seus agentes. Pessoalmente, detesto poema mainstream, mas não acho que Rupi Kaur seja a causa do problema com a literatura hoje em dia. O sucesso dela é mais um sintoma da crise de leitura pela qual estamos passando, somado a um anti-intelectualismo e uma existência cada vez mais performática e restrita aos imediatismos das redes sociais.
Antes de prosseguirmos, vale destacar que o que chamo de poema mainstream não se confunde com todo e qualquer poema contemporâneo. Não só seria absurdo da minha parte fazer tamanha generalização mas incoerente pois há vários poetas contemporâneos que gosto e recomendo como: Ocean Vuong, Louise Glück (infelizmente morreu há poucos meses), Richard Siken, Ada Limón, Anne Carson e David Lehman.
Então, vamos começar pela terminologia. Como assim poesia “mainstream”? Ora, o objetivo de quem cria quatro linhas de poesia no Instagram sobre temas gerais como saudade ou tristeza é atingir o máximo de compartilhamentos possível; desse modo, o objeto tem que ser assimilado, ou no mínimo identificável pelo máximo de pessoas – e, para isso, ele não pode ser muito complexo. Aí esbarramos no primeiro problema pois, como afirma Reuben Brower, célebre crítico e professor de poesia em Harvard: “Escrever bem é uma arte que não é passível de métodos de produção em massa.”
Na maioria das vezes, o gostar ou não de uma obra de arte é algo completamente subjetivo, independente de uma avaliação técnica. Algo que ocorre nas discussões culturais na internet e demonstra uma séria defasagem em “media literacy” (capacidade de analisar criticamente mensagens veiculadas pela mídia de massa), é a confusão entre gostar de uma coisa e avaliar a qualidade dessa coisa. O melhor exemplo que posso dar é pessoal: eu amo a série Supernatural, mas tenho plena consciência de que o roteiro muitas vezes é cheio de inconsistências, as atuações são caricatas, e a série como um todo se tornou repetitiva e incoerente com o passar dos anos. Isso me impede de assisti-la toda semana e experienciar uma alegria infantil? Não! Mas me impede de recomendar aos amigos, por saber que é objetivamente ruim, mesmo que subjetivamente eu a adore. Outro exemplo: detestei o livro Morte em Veneza de Thomas Mann, mas reconheço as grandes realizações técnicas e estilísticas da obra, bem como a relevância que ela tem para a literatura ocidental. Portanto, eu jamais diria que Morte em Veneza é um livro ruim, apenas que não gostei.
O primeiro passo, então, é tentar discernir a poesia “bem feita” da “mal feita”, deixando claro que o ato de avaliar se o autor foi bem sucedido em sua empreitada não se confunde com o apreço que o indivíduo sente pela obra.
Normalmente, somos ensinados sobre arte numa perspectiva que foca na história e contexto, mas raramente a como ler/engajar/ver a obra. Apreciar e compreender arte complexa tende a ser visto como um exercício pretensioso ou elitista, pois requer algum tipo de “sabedoria” prévia. Não acho que isso deva ser uma coisa maligna, e só porque algo é menos acessível não quer dizer que foi feito com a intenção de excluir, significa apenas que é preciso de um pouco mais de esforço mental: olhar por mais tempo, cavar um pouco mais fundo para falar a língua do poema à sua frente (resumindo, abordar o poema com intencionalidade, como coloquei no meu guia de leitura poética).
Como vimos, o que é bom ou ruim numa obra de arte é subjetivo, até certo ponto; por exemplo, o que acho ruim em poemas como os de Kaur é que eles são tão escandalosamente preguiçosos que eu hesitaria em chamá-los de poesia. Muitas vezes, os poemas dela (e de quem a copia) são compostos de 3 a 5 linhas, no máximo, dizendo a coisa mais banal (e até vergonhosa) possível, numa tentativa de performar sensibilidade e profundidade sem de fato expressar algo significativo, pois isso requer mais de 5 minutos de reflexão e mão de obra (e quem tem tempo pra isso, né?).
Ainda assim, não acho que ser um leitor de Kaur e derivados seja o problema em si – o verdadeiro problema começa quando só se consome esse tipo de poesia, pois acredito que literatura preguiçosa deixa o leitor preguiçoso também (mentalmente falando). Helen Vendler, considerada uma das melhores e mais perspicazes críticas de poesia contemporânea, define a poesia como:
uma arte que emerge sempre de um sentir apaixonado, mas deve ser composta com uma técnica profunda. Por mais abstrata que seja sua expressão simbólica, ela é algo intimamente enraizado na vida emocional. (tradução livre)
Certamente a poesia mainstream – justamente por ser mainstream – não tem como ser composta por “uma técnica profunda”; pelo contrário, ela me parece tão superficial que é impossível acreditar que esteja “intimamente enraizada na vida emocional”. É muito clara a falta de lapidação da linguagem. Enquanto leitora, a falta de esforço do autor me soa como indiferença, tanto em relação à obra quanto ao público. Se o autor procura atalhos para chegar ao produto final e não leva o próprio trabalho a sério, por que eu o levaria?
Visto que todos nós somos, em alguma medida, prisioneiros do algorítmo e daquilo que a mídia popular considera relevante, dificilmente obras mais complexas, diferentes, ou mesmo antigas serão disseminadas amplamente por serem menos palatáveis. Só conheço poetas “bons de verdade” porque tenho um interesse literário particular e, consequentemente, vou atrás deles. Mas alguém que tem um interesse mais casual não vai nem saber que a poesia mitológica de Yates existe, por exemplo, porque o que é divulgado se resume a coletâneas de poemas escritos ou lidos por celebridades e influencers buscando adquirir capital cultural (e financeiro, óbvio), mas sem muita preocupação com a arte em si.
Quando falo em capital cultural é no sentido dado por Pierre Bordieu, que o subdivide em “objetificado”, “incorporado” e “institucionalizado”. O Filósofo define como “capital cultural objetificado” a posse de bens culturais como obras de arte e livros, ou como o acesso à museus, peças teatrais, cinema, entre outros. Interessante pensar, por exemplo, que celebridades e influencers (principalmente as consideradas “fúteis” pela mídia) podem querer simular, através da posse de bens, o “capital cultural incorporado”, o qual é acumulado a partir de uma assimilação que demanda tempo e se torna parte duradoura da personalidade do indivíduo, e é composto de elementos como gostos (músicas, literários, artísticos e etc), o domínio da língua culta e a cultura escolar (diplomas etc).
Poesia, sendo um instrumento historicamente usado para transmitir o inconsciente ou narrar feitos épicos, é a escolha óbvia para o indivíduo que quer cultivar uma “auto mitologia" na internet. Como demonstrar na superfície das redes que você tem conteúdo, sem ter que se dar ao trabalho de realmente cultivar e aprender? Aparentemente, é só escrever umas quatro frases partidas ao meio para formar uma estrofe, falando sobre um término dramático com um homem genérico e narcisista. Essa necessidade de provar profundidade é muito comum em mulheres, que normalmente são levadas menos a sério pela sociedade apenas por serem mulheres (pior ainda se forem jovens). Quando se trata de celebridades, então, aí é que a necessidade vai além do desejo de criar uma persona ideal – é uma questão de negócios. Megan Fox, que é estereotipada na mídia como uma “bimbo", recentemente publicou um livro de poesia chamado Pretty Boys are Poisonous, seguindo o precedente de Emily Ratajkowski e Julia Fox, talvez numa tentativa de efetuar um rebranding. Eu li alguns poemas e… bem, é difícil não categorizar o livro como um “cash-grab" para os fãs somado a uma tentativa de tirar proveito da trend “female rage”.
Se levarmos em conta que, nos últimos anos, os livros se tornaram acessórios e a leitura um hobby “descolado” graças a comunidades como o BookTok, não é estranho pensar que as celebridades iriam se aproveitar da mais nova moda (Reese Witherspoon, Emma Roberts e Kaia Gerber possuem clubes do livro — recomendo ver o vídeo abaixo). Esse ano, vimos uma proliferação imensa de livros escritos por celebridades e isso não é coincidência. É claro que os influencers não ficam de fora, e os versos digitados por cima de uma foto do pôr-do-sol são ótimas ferramentas de engajamento (quantos stories você já pulou de alguém repostando frases com “ser, florescer” ou falando do “vermelho da carne”?).
A poesia mainstream – como tudo que possui esse adjetivo – faz sucesso justamente porque é fácil compreendê-la, e quem não está acostumado com uma maior complexidade linguística talvez ache aquilo incrível mesmo, por não ter com o que comparar. Falo por mim mesma: até os 15 anos eu só lia thriller policial e genuinamente achava O Código Da Vinci o livro mais genial que eu já tinha lido. Mas aí é que tá: “que eu já tinha lido”. Tudo mudou quando li Memórias do Subsolo de Dostoiévski aos 16 (falei sobre essa experiência aqui) e acabei descobrindo que a literatura poderia ser e fazer coisas que eu jamais teria imaginado. É como passar a vida vendo filmes em preto e branco numa tela minúscula e depois assistir Cantando na Chuva em IMAX – o filme preto e branco tem seu charme, mas é difícil voltar atrás uma vez que experienciamos imagens em technicolor.
Importante ressaltar que, ao reclamar da escrita preguiçosa ou sem sofisticação, não estou dizendo que a dificuldade do poema é diretamente proporcional à sua qualidade. Esmerar-se na composição da linguagem não é deixar o objeto tão criptografado que pode ser um novo Ulysses – quem escreve sabe que a dificuldade maior é dizer muito com pouco – significa apenas que a “sacada” não será imediata.
Em se tratando de arte, não quero “consumir conteúdo”. O que eu quero é assistir, ouvir, sentir e, acima de tudo, me envolver. Particularmente, acho muito mais divertido quando uma obra não é óbvia e me permite experienciar algo meio intangível, deixando espaço suficiente para que eu possa trazer algo do meu subconsciente para o texto, mas sem ser tão vago a ponto de ser completamente enfadonho e estéril. Para quem conhece pouco da arte ou possui a imaginação de um burocrata, certamente as poesias de Instagram podem arrancar um “uau”.
O grande poeta romântico Samuel Taylor Coleridge, lembrando de seu rígido professor de literatura da juventude, trouxe uma perspectiva relevante:
Aprendi com ele que a poesia, mesmo a mais grandiosa e, aparentemente, a mais ousada das odes, tinha uma lógica própria, tão severa quanto a da ciência; e mais difícil, porque mais sutil, mais complexa e dependente de causas cada vez mais evasivas. Nos poetas verdadeiramente grandes, ele diria, há uma razão atribuível não apenas a cada palavra, mas à posição de cada uma delas (tradução livre).
Pode-se argumentar que os poetas de Instagram nunca anunciaram a pretensão de serem os novos Baudelaires ou Drummonds, e é verdade (até onde eu sei). Porém, o domínio que eles exercem na mídia, somado à qualidade questionável de suas produções, oferece uma barreira entre o leitor casual e a boa poesia. Assim, se esse leitor está exposto apenas à linguagem frugal do poema mainstream ele provavelmente não vai reparar (ou mesmo apreciar) nas sutilezas mencionadas por Coleridge.
É triste perceber o potencial desperdiçado pois, enquanto as redes sociais podem democratizar tanto o acesso à publicação para autores independentes quanto o acesso à poesia em si para os leitores, eu percebo que, na realidade, não é bem assim. Quantos poetas interessantes devem existir, sem espaço na internet ou no mercado editorial, por escreverem poemas que não são fáceis de capitalizar imediatamente? Muitas vezes os autores que vendem já são celebridades ou influencers, porque as editoras sabem que isso garante vendas, independente da qualidade entregue.
Mesmo que a poesia fácil e rápida não seja um mal absoluto, temos que admitir que ela está sujeita a inúmeras críticas, principalmente quanto à forma e intenção por trás, e existe um perigo real de limitar as pessoas a um tipo de linguagem que tem pouco a oferecer, emocional e intelectualmente. O que me irrita nos poemas estilo Rupi Kaur é que parece que eles são escritos almejando o sucesso comercial, e é claro que isso prejudica a qualidade do poema: se eu quero que o máximo de pessoas possível veja, entenda, e compartilhe minha obra, não posso fazer nada mais complicado do que uma manchete de jornal. Não existe consenso sobre qual propósito da poesia, mas com certeza não é viralizar na internet.
Por fim, é preciso esclarecer que eu não estou colocando o “consumidor” (porque se trata de um produto) da poesia mainstream como uma mera vítima das redes sociais – afinal, a internet é ditada pelas próprias pessoas, e Kaur e afins só fazem sucesso porque tem quem queira consumir aquilo. O que eu percebo na nossa sociedade – e isso não se restringe à literatura – não é só uma incapacidade cultural de engajar seriamente com arte mais sofisticada, mas uma resistência cultural, uma falta de interesse em fazê-lo, o que mostra como é profunda a aversão a qualquer coisa que demande esforço intelectual – se a existência se resume a uma performance na internet, para que se dar ao trabalho de investir em algo além da imagem?
Li um ensaio ótimo de Rachel Allen chamado “Difficult and Bad”, no qual ela discute o ciclo vicioso formado pela falta de interesse das editoras em publicar obras “difíceis” por acreditar que o “leitor médio” não vai gostar por não entender, deixando esse leitor preso ao que a editora considera adequado para ele, reforçando a suposição criada pelo próprio mercado editorial de que “o público geral não consegue lidar com conceitos complicados, livros formal ou linguisticamente inovadores ou outras obras desafiadoras”. Allen fala sobre como no setor editorial, “acessível" e “acadêmico" são funcionalmente codificados para significar “bom" e “ruim", respectivamente. A ideia de clareza, ou quão narrativamente legível, quão “adequado ao leitor" algo é, está situada como um marcador de qualidade:
Voltando à questão editorial, há um anti-intelectualismo arraigado, complexo e classista que permeia o Reino Unido e que teme a diferença, a dificuldade e a experimentação. Vejo esse anti-intelectualismo de forma mais proeminente em ambientes de classe média, uma perspectiva que teme ou ignora (ou não acredita em) o leitor trabalhador, como meu pai, que tem fome de pensar criticamente e com complexidade. Em nenhum outro lugar isso é mais comprovado para mim do que nos binários codificados na indústria editorial contemporânea do “bom" e “ruim" do trabalho “acessível" versus “difícil", algo que acredito estar diretamente ligado à discrepância de classe no setor editorial e à criação de um mito sobre o que o “leitor geral" pode tolerar, impulsionado por pessoas de classe média e alta, com educação em Oxbridge, que insistem em diluir a publicação intelectual. (tradução livre)
Há essa hesitação diante de certas obras consideradas “difíceis” por medo da não compreensão – de fato, é frustrante sentir que as palavras na sua frente não estão transmitindo o sentido que deveriam. Eu entendo o sentimento, e meu conselho é: não se preocupe com isso. Existem dezenas de poemas que adoro, mas que eu não poderia explicar sobre o que se trata. Por muitos anos detestei poesia, porque achava “confuso por ser confuso” ou então piegas. O que eu não sabia era que não apenas era possível como permitido gostar de um poema sem saber o “significado” por trás. Na maioria das vezes, me atraio primeiro pelas palavras, ritmo, imagens evocadas, “vibes”; só depois de algumas releituras quem sabe eu comece a entender a mensagem – se é que ela existe. Helen Vendler diria que não: “um poema não é um ensaio ou uma ‘mensagem’, é uma coisa imaginada, uma obra de arte como uma peça musical, uma pintura ou uma dança”
Essa ideia de que é imprescindível saber o significado por trás de um poema é algo muito criticado em certas vertentes da Academia. Marjorie Garber em Shakespeare in Slow Motion propõe, a partir da tese de Reuben Brower, uma leitura das obras de Shakespeare focada no texto em si, estimulando a capacidade de abstração do aluno diante da linguagem:
Meu objetivo... é desacelerar a movimentação rumo ao contexto, ou mesmo revertê-la completamente, redirecionando a atenção para a linguagem das peças, cena por cena, ato por ato, momento por momento, palavra por palavra. Que “Shakespeare" seja a designação que damos ao autor das peças publicadas com seu nome. Não especulemos sobre seus motivos pessoais ou profissionais, seus pensamentos íntimos, seu relacionamento com a esposa ou os filhos, suas aspirações culturais, suas finanças, sua religião ou sua atitude em relação ao monarca reinante. (tradução livre)
Esse modo de ler, destrinchando as palavras, chamado de “close reading” (algo como leitura atenta), pressupõe um sistema complexo e intencional com relação à ordem e escolha de palavras, símbolos e metáforas no poema. Podemos passar semanas dissecando um poema de Milton, pois até onde recai a sílaba tônica é um ponto relevante. O mesmo não se pode dizer de um poema de Rupi Kaur:
the thing about writing is
i can’t tell if it’s healing
or destroying me
(de Milk & Honey)
É isso, esse é o “poema”. Digam o que quiserem, mas descrições e afirmações em frases partidas ao meio não configuram qualquer tipo de poesia ou estruturação literária. Um poema não tem que ser longo e com uma linguagem arcaica para ter valor – vejam esse de W. B. Yeats:
Had I the heavens' embroidered cloths,
Enwrought with golden and silver light,
The blue and the dim and the dark cloths
Of night and light and the half light,
I would spread the cloths under your feet:
But I, being poor, have only my dreams;
I have spread my dreams under your feet;
Tread softly because you tread on my dreams.
(Aedh Wishes for the Cloths of Heaven)
É injusto comparar Kaur e Yeats, mas foi necessário. Colocando os dois poemas lado a lado, minha conclusão é que um realmente possui a “técnica profunda” mencionada por Vendler, e o outro é apenas uma frase sem qualquer imaginação. Se não estivesse em formato de estrofe, ninguém saberia nem que era poesia – não há uma linguagem nem textura que se possa experienciar.
Como tudo na vida, ler também é uma questão de prática. Um dia fui mostrar um soneto de Shakespeare para minha irmã, e foi engraçado ver que ela não capturou nada do que para mim estava explícito, mas isso só foi possível porque leio Shakespeare há anos e já conheço seus jogos de palavras. A boa poesia treina o olhar e trabalha o poder imaginativo, nos deixando mais sensíveis à linguagem e suas nuances.
Apesar das minhas críticas, acho admirável qualquer pessoa que tente se expressar através da poesia, que para mim é (ou deveria ser) o gênero mais difícil de escrever, e por isso fico frustrada ao me deparar com frases pobres que tentam passar por poemas. No fim das contas, a raiz do problema é sempre o imediatismo da internet, que é incompatível com a mão de obra e paciência necessários para esculpir um bom poema (ou um bom qualquer coisa).
Sinto que devemos a nós mesmos experimentar todo tipo de hobby que der vontade, independente de termos talento para aquilo ou não, afinal a vida é uma só. Ainda assim, é preciso encarar o duro fato de que, para criar ou compreender algo de valor artístico, sempre será necessário esforço, interesse e criatividade. O pensamento poético, tal qual o pensamento narrativo ou linguístico, é diferente do pensar cotidiano racional, e para acessar essa configuração mental é necessário, no mínimo, intenção e imaginação. Como argumenta Vendler:
Nos poemas, o pensamento se torna visível não apenas para instruir, mas também para encantar; ele deve entrar de alguma forma na fusão imaginativa e linguística realizada pelo poema. Embora mantenha sua inteligência vigorosa, o pensamento poético não deve desequilibrar o poema na direção do “pensamento". (tradução livre)
Um bom poema é uma experiência imaginativa, podendo atingir você sem a necessidade da compreensão lógica. É preciso abrir mão da vontade de decodificar para que a vivência sensorial do poema possa predominar (leio poemas para mim mesma em voz alta, e posso afirmar que o ritmo muda tudo). O exemplo que dei sobre “close reading” é algo adicional, que você pode tentar fazer apenas por curiosidade – não é preciso aplicar esse método para experienciar e adorar poesia, podendo o processo ser totalmente intuitivo.
Poemas mainstream como o de Kaur não promovem experiência nenhuma, por não oferecer nada em termos de linguagem, imagem e sentidos. Não sei por que o soneto 81 de Shakespeare me faz chorar toda vez que o leio (e sinceramente não quero saber, porque fica mais “mágico” assim), mas sei que é uma experiência profundamente emocional para mim. Acho que é próximo do que Vendler falou:
Assim que descobri que as vozes de escritores mortos falam em tons vivos, fui absorvida pelo fenômeno dessas vozes. Parecia-me milagroso que você pudesse realmente ouvir Shakespeare ou Keats falando a partir da página (tradução livre)
Como leitores, nós não só podemos como devemos exigir dos autores (e de quem os publica) algo que estimule e inspire nossa imaginação. Não podemos ter medo de um texto – afinal, o pior que pode acontecer é nos sentirmos confusos e isso se resolve. Na verdade, o pior que pode acontecer é se acomodar a obras que não oferecem nada além de dopamina e identificação – um triste desdobramento do vício em redes sociais, que reforça as ideias caducas do mercado editorial aludidas por Allen. Talvez não haja uma conclusão melhor do que a descrição de Emily Dickinson sobre a poesia:
Se eu ler um livro e ele deixar todo o meu corpo tão frio que nenhum fogo possa me aquecer, sei que é poesia. Se eu me sentir fisicamente como se o topo de minha cabeça tivesse sido arrancado, sei que isso é poesia. Essas são as únicas maneiras pelas quais sei que isso é poesia. Existe alguma outra forma? (L342a, 1870)
Referências:
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muuuuito bom